domingo, 16 de abril de 2017

Yasunari Kawabata, Terra de Neve


Ler um romance implica sempre um transportar-se para o universo romanesco. Não é o mundo, o meu mundo, quotidiano que procuro e encontro, mas um outro desenhado pela narrativa. Ler romances implica, desde logo, uma capacidade de transporte e um exercício de estranhamento. O leitor é um forasteiro que quer compreender as regras de conduta, as normas morais, o sentido do fluxo do trânsito. Se leio um romance português, europeu, americano, encontro, por estranho que possa ser o território colonizado pelo narrador e suas personagens, inúmeras indicações que me são familiares e, passadas algumas páginas, começo a sentir que estou em casa ou numa aldeia vizinha.

Ler Terra de Neve, de Yasunari Kawabata, implica mais do que uma capacidade de transporte e um exercício de estranhamento. O Japão e a sua cultura são radicalmente estranhos. São mais estranhos ainda porque vivemos num tempo onde se tem a falaz ilusão de que tudo está próximo e nada nos é desconhecido. Toda a gente já ouviu falar de geishas, mas saberá efectivamente o que é uma geisha? Saberá distinguir entre uma geisha que vive numa grande cidade como Kyoto ou Tóquio de uma que vive no mundo rural onde se localizam as termas (território desta narrativa)? A questão que se coloca ao leitor ocidental é interessante.

Numa recensão encontrada na Internet, escreve-se: “Por outras palavras, as cenas desdobram-se espontaneamente e nem tudo é explicado. Tem que se pensar. Se alguém acha que pensar é árduo, então também precisa de paciência”. Diria, porém, que para ler a obra de Kawabata não é apenas necessário cumprir a prescrição de Coleridge, a de suspender a descrença, aplicável a toda a literatura. É preciso fazer o contrário do que é proposto pela recensão citada. Não é uma questão de paciência e muito menos de pensar. O essencial será suspender mesmo o pensamento e mergulhar naquele território de luz e sombras, não para desfazer analiticamente o mistério mas para participar nele, contemplando-o.

O romance é solidário com a cultura japonesa e com os seus fundamentos espirituais, tão adversos ao raciocínio, que se concretizam no Budismo Zen ou na arte do haicai. A estranheza está aqui: produzir uma obra narrativa sob a influência de uma cultura de suspensão ou minimização do discurso. A história gira em torno de três personagens, o rico e diletante Shimamura (estava a escrever um livro sobre o bailado ocidental sem nunca ter visto um), um citadino de Tóquio, casado, Komako, uma jovem geisha rural, – as duas personagens centrais – e uma segunda jovem, Yoko, provavelmente destinada à profissão de geisha. Os homens casados, segundo o costume, frequentam as termas sem a companhia das respectivas mulheres e é nessa situação que Shimamura conheceu e se sentiu atraído por Komako. O romance começa na viagem de comboio de Shimamura, quando volta às termas para se encontrar com Komako. Nessa viagem, nota a presença de uma bela jovem, Yoko, que acompanha um doente, e que sai na mesma estação.

Kawabata não faz da paisagem, da terra de neve com as suas mutações, um quadro de fundo onde decorre a vida das personagens. Na tradição ocidental, está inscrita uma quase oposição entre o mundo da vida e o espaço natural onde essa vida decorre. Neste romance, porém, há uma simbiose entre a natureza e o homem, que podemos captar, curiosamente, pela ideia de fluxo heraclitiano. O jogo de sentimentos entre Shimamura e Komako ou o nascimento do interesse de Shimamura por Yoko inscrevem-se na paisagem e fluem nela como qualquer outro elemento natural. Nascimento, maturação e morte de um amor não diferem do fluxo das estações, do ritmo da vida, do pulsar do cosmos.

Mesmo a morte de Yoko na cena final, uma morte que de alguma maneira faz lembrar a tragédia grega, ajuda a inscrever o conjunto da vida humana no cosmos: Mas quando [Shimamura] quis avançar para a voz quase delirante [de Komako], os homens que se tinham precipitado para lhe tirarem dos braços Yoko inerte, os homens que se apertavam à volta dela, repeliram-no tão violentamente que perdeu o equilíbrio e cambaleou. Deu um passo para se recompor e, no instante em que se inclinava para trás, a Via Láctea, numa espécie de extraordinário frémito, fundiu-se nele.

A dificuldade que o leitor ocidental pode encontrar reside toda aqui. Deverá entrar no território romanesco, mas não lhe cabe identificar-se com o protagonista da acção – pois a acção nem sequer é uma categoria essencial a esta narrativa – mas pura e simplesmente contemplar a natureza das coisas no seu fluir eterno e efémero. A fusão da eternidade e da efemeridade de uma vida que flui faz toda a beleza da narrativa.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Ivan Turguénev, Águas da Primavera


Águas da Primavera (1872) é uma meditação sobre um tema recorrente da tradição ocidental, a oposição entre o amor puro e inocente, o verdadeiro amor, e a paixão erótica, a sombra que conduz o homem à perdição. O romance insere-se numa preocupação de Turguénev com o primeiro amor. Já em 1860 tinha escrito O Primeiro Amor (ver recensão aqui). Fragilidade e ilusão do amante são os temas retratados nas duas obras. Em O Primeiro Amor é explorada a situação frágil e impotente do jovem perante a submissão da amada ao desejo e poder de um homem mais velho, o próprio pai do apaixonado. Na verdade, uma espécie de anunciação do advento da psicanálise. Em Águas da Primavera o que está em jogo é a fragilidade do amor perante a sedução erótica.

A primeira parte do romance narra o processo de enamoramento, na Alemanha, de um jovem russo, Sánin, por Gemma, uma rapariga italiana, filha dos proprietários de uma pastelaria. O acaso condu-lo ali e através de um conjunto de peripécias – entre as quais estão o ajudar a recobrar a consciência ao irmão da jovem, a entrada para o convívio da família, um passeio pelo campo em companhia não apenas da família italiana mas também do noivo da jovem (um burguês alemão, encarnação das virtudes comerciais germânicas, que se viria a revelar cobarde e, mais tarde, desonesto), um insulto por parte de um militar alemão e um duelo – o jovem russo e a jovem italiana descobrem o amor e traçam planos para o futuro.

Quando procura satisfazer as condições materiais que assegurem esse futuro, Sánin encontra uma mulher, também ela russa e estranhamente casada com um antigo companheiro de escola, que o seduz até à submissão mais completa e à destruição do seu futuro casamento, para o rejeitar e desprezar de seguida, como se o interesse por ele existisse apenas enquanto resistia aos seus jogos de sedução. A verdade, contudo, é que esta experiência de submissão erótica é uma revelação, uma revelação que tem como arquétipo a sedução que Eva exerce sobre Adão e que conduz, na mitologia hebraica, à expulsão da humanidade do paraíso. Neste caso, revela-se a fragilidade ontológica do homem e a natureza facilmente corruptível da inocência. Também no romance de Turguénev há uma revelação: a da fragilidade do primeiro amor, de um amor ainda inocente, que não tem energia suficiente para resistir ao jogo da sedução.

Sánin, depois da experiência arquetípica da degradação da paixão erótica, torna-se pragmático e, durante a vida de adulto não é ao amor que presta culto, mas aos seus negócios, que faz prosperar. A experiência desse amor e da queda para que se deixa arrastar é narrada em forma de rememoração. O que significa esta estratégia narrativa? Significa uma hiper-ficcionalização do acontecido. Amor inocente e a paixão erótica são figuras da imaginação, são ficções e como tal são descritas enquanto ficção de uma ficção. É esta hiper-ficcionalização realizada pelo protagonista que, passados dezenas de anos, lhe permite olhar de forma distanciada e restabelecer contacto com esse primeiro amor, que seguiu também o seu prosaico caminho. É como se a ligação com a realidade fosse impossível na experiência directa e imediata e exigisse o distanciamento que a ficção impõe ao acontecido. Percebe-se, deste modo, que apesar da aparência, o amor inocente e a submissão erótica possuem um raiz comum. Nascem da ilusão propagada pela imaginação que afecta a forma como interpretamos os nosso próprios desejos. As águas da primavera acabam por secar no verão, mas quando chega o outono da existência emergem sublimadas do fundo da memória. É esta que ordena e dá sentido ao heteróclito da vida, às múltiplas tensões a que o desejo é submetido, às inúmeras experiências e expectativas a que cada um é submetido.

Como em todas as verdadeiras obras literárias, em Águas da Primavera existe, subjacente à narrativa, uma assumpção sobre o que é a literatura e, fundamentalmente, a ficção. Só é possível ficcionalizar aquilo que já é uma ficção. Tanto o primeiro e inocente amor como a queda no abismo da submissão erótica não são factos brutos da existência, mas ficções. Ficções devem ser entendidas como fabricações, produções do espírito. Elas são factos apenas no sentido em que são fabricadas, feitas. É a natureza operativa e fabricada - isto é, ficcional - presente nos acontecimentos narrados que permite a sua ficcionalização enquanto literatura.