segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Han Kang, A Vegetariana


Quando se lê uma obra, lemo-la sempre a partir de tudo o que lemos anteriormente. Não há leitura que seja despida de um certo enviesamento trazido pela nossa história de leitores, para não falar da própria história existencial. Ao acabar de ler o surpreendente romance A Vegetariana, da escritora sul-coreana Han Kang, vencedor do Man Booker International Prize, de 2016 (edição original na Coreia do Sul em 2007), perguntei-me que autores me estariam a ajudar a enquadrar a visceralidade da meditação sobre o desenraizamento do indivíduo trazida pela obra de Han Kang. Acabei por juntar uma dupla referência. Por um lado, o filósofo francês René Descartes e, por outro, o escritor checo Franz Kafka e a sua obra A Metamorfose. De facto,  A Vegetariana é a descrição da metamorfose onírica da protagonista, Yŏnghye, em árvore. É aqui que entronca a referência a Descartes e à impossibilidade que temos de distinguir claramente o estado de vigília do sonho. Tudo começa com um sonho e acaba como se a própria Yŏnghye tivesse sido arrastada para dentro de um estado onírico de onde não consegue sair.

A descrição da heroína, feita pelo marido na primeira parte (seria melhor dizer primeiro andamento) da obra, mostra-nos uma mulher absolutamente banal, sem qualquer paixão, mas também sem qualquer perturbação. Ele casou com ela porque, sendo ele também completamente banal e medíocre, ela era a mulher que lhe convinha. A trivialidade da vida quotidiana é suspensa quando ele a descobre, uma noite, frente ao frigorífico a despejar todos os produtos de origem animal. Um sonho terrível atormentou-a de tal maneira que a única saída que encontrou foi tornar-se irredutivelmente vegetariana. Um sonho expulsa-a da vida comum e vai expô-la a toda a violência que se esconde na família enquanto instituição. Culmina com uma tentativa de suicídio e o abandono do marido. A opção pelo vegetarianismo serve para tornar claro que o casamento era uma falsificação assim como a família, de onde provinha, tinha as suas raízes na violência do pai, como se tornou a manifestar no episódio que conduz à tentativa de suicídio. A violência do real e o desenraizamento existencial abrem as portas para a transição de Yŏnghye para o mundo da fantasia e para a dimensão onírica.

A segunda parte da obra gira em torno da obsessão sexual do marido da irmã de Yŏnghye, por esta. O cunhado é um artista sem sucesso que trabalha em pequenos vídeos e que procura uma saída para a sua carreira de artista. O desejo erótico, contaminado pela preocupação estética, é mediado por uma coreografia de motivos vegetais, fundados na mancha mongólica de Yŏnghye. Quer pintar o corpo da cunhada com flores, o que ela aceita, e encontrar alguém que, pintado da mesma maneira, contracene com ela, enquanto ele filma. O escolhido aceita mas quando lhe é pedido para passar de cenas eróticas simuladas para uma penetração real, recusa. Então o cunhado tenta fazer amor com Yŏnghye, mas esta não o aceita, pois não se encontra pintado. Se se pintar com os mesmo motivos vegetais, ela acederá aos seus desejos. O que acaba por acontecer no apartamento de Yŏnghye. O erotismo e o sexo carnal já só são possíveis no âmbito vegetal, no abraço de duas plantas. À recusa da carne como alimento sucede a metamorfose da sexualidade que transita do âmbito da carne para o domínio vegetal. Descobertos e denunciados pela irmã de Yŏnghye, são ambos internados num hospício, de onde ele rapidamente sai, mas onde ela, acentuado o desenraizamento, é sugada para dentro de um mundo onírico de onde não sairá.

A terceira e última parte torna patente a violência inerente às instituições psiquiátricas. Esta violência e a atenção da irmã – onde se vai formando a culpa por ter colocado ali Yŏnghye, talvez para se salvar a si mesma de um tal destino – são o enquadramento final da metamorfose. A heroína julga-se árvore e as árvores não comem, apenas são regadas. Ela é agora uma árvores exilada da floresta. O resultado é a intensificação do estado de anorexia, com a recusa de toda e qualquer alimentação e as múltiplas tentativas de a forçarem a alimentar-se, tentativas onde a violência é o eixo central. Incapazes de a alimentarem, transferem-na para um hospital comum. É na ambulância que a irmã, Inhye, lhe segreda que tudo o que se tem passado talvez não seja mais do que um sonho.

A impossibilidade cartesiana de distinguir claramente entre sonho e realidade surge assim como o horizonte de uma metamorfose do self. Não se trata aqui de uma transformação que permita o acesso a um ponto de vista superior e mais integral sobre si e o mundo. Como em Kafka trata-se de uma transferência para uma outra ordem de existência já não humana. No sonho, contrariamente ao lugar comum, dissolve-se a humanidade, transformando-se o indivíduo num ser vegetal, numa árvore. Esta metamorfose, porém, é um sintoma terrível das sociedades humanas. Ser árvore é procurar um enraizamento fundo na terra. É isso que a desenraizada Yŏnghye, perdida no mundo do sonho, procura. Deste ponto de vista, o romance de Han Kang é uma meditação, escorada numa metamorfose onírica, sobre o desenraizamento que grassa nas sociedades modernas, nas sociedades que perderam a ligação com a tradição e a natureza.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Eça de Queirós, A Cidade e as Serras


1. O homem teórico e a pastoral serrana

Em A Cidade e as Serras, publicado postumamente em 1901, Eça de Queiroz mostra-se bastante a par do espírito do tempo. Em 1872, sob a influência do romantismo, Nietzsche, em A Origem da Tragédia, lança um violentíssimo ataque contra a cultura ocidental fundada na racionalidade e no homem teórico, isto é, no homem cuja finalidade e justificação de vida é a produção de conhecimento. Em Jacinto, com a sua biblioteca de 30 000 volumes, Eça traça a caricatura da avidez do saber presente no homem teórico ocidental. O seu desejo de saber não é já a de um Fausto, que pactua com o diabo para alcançar o conhecimento, mas só a necessidade de acumular livros, alimentar uma gigantesca e sempre actualizada biblioteca, onde se pode encontrar tudo o que as ciências e a filosofia produzem. Uma biblioteca que Jacinto não lê, que o enfastia.

O produto de todo o labor científico, segundo a obra, resume-se, assim, a papel, que se acumula em estantes, e aos aparelhos técnicos, os quais acabam por atrapalhar a vida quotidiana, mais do que libertá-la. A troca de Paris pela serra do norte de Portugal, por Tormes, representa o voltar as costas à civilização científica do Ocidente, bem como à técnica (o 202 dos Campos Elísios, residência parisiense de Jacinto, era uma espécie de museu real dos últimos produtos da técnica) que dela decorre. A virulência do ataque de Eça de Queiroz à civilização do homem teórico não é menor que a de Nietzsche, embora este veja a salvação na restauração do espírito trágico dos gregos através da música de Wagner, e Eça proponha um Jacinto filho-pródigo que volta à sua casa ancestral, a uma espécie de Arcádia serrana, onde encontra, apesar das tempestades invernais e da miséria que ali descobre, um verdadeiro locus amoenus.

Com Zé Fernandes, narrador e personagem, e Jacinto, Eça de Queiroz acaba por fornecer protótipos do homem português. Pastores viris, não efeminados como o renascimento os pensou, em contacto com a natureza e a vida rude dos campos. O homem do conhecimento não passa de uma impostura das grandes cidades. Mesmo quando, num passeio à Sorbonne, Zé Fernandes reage ao desacato dos estudantes, não o faz pelo amor ao saber, mas ao da ordem, essa velha e boa ordem que reina nas serras pátrias. Como em Nietzsche havia o prenúncio de uma grande tragédia no destino dos alemães, também neste texto de Eça se configura muito do nosso destino no século XX.

2. Arquétipos femininos e tragédias pessoais

A segunda nota de leitura sobre A Cidade e as Serras liga-se à imagem do feminino. De certa maneira, as personagens femininas da obra são pouco densas e a sua construção obedece à elaboração de estereótipos, cuja finalidade parece ser a de fornecer uma imagem arquetípica da mulher que se deve ter em consideração, quando chegar a hora de formar família.

Jacinto não abandona, ao sair de Paris, apenas a civilização do saber e da técnica. Abandona também a vida social de uma certa alta sociedade e os seus jogos amorosos, onde brilham duquesas e cocottes, não se distinguindo umas das outras. A mulher, que Jacinto vai encontrar em Tormes, está longe deste jogo de sedução, seja esta motivada pela necessidade, seja pelo mero prazer e exercício de poder de casta. Joaninha, uma reminiscência de Garrett, acaba por ser, à imagem da sua, e também de Zé Fernandes, tia Vicência, a súmula das virtudes femininas que dão ânimo ao homem gasto pela experiência mundana. Joaninha é pura, fadada para a maternidade, uma dona de casa, cujos traços eróticos são, fora do segredo do lar, não reveláveis.

Esta deserotização da descrição de Joaninha não deve ser relacionada apenas com a mulher mundana da grande cidade. Ela aparece aqui em oposição a esse tipo de mulheres, mas nessa sua oposição ela representa também uma forma de relacionamento muito específica com o masculino. Ela é a salvação para o homem português experiente e cansado dos jogos eróticos da vida em sociedade. Muitas vezes é-se tentado a ver este tipo de estereótipos, os quais chegaram até hoje, como produto do Estado Novo e da coligação moral entre o salazarismo e a Igreja Católica. O que se constata, porém, é que a ideologia do Estado Novo apenas reflecte e conserva modelos mais antigos, veiculados inclusive por pessoas tão insuspeitas como Eça de Queirós.

Esta imagem fictícia da virtuosa mulher portuguesa não deixa de ser o produto de um eros masculino temeroso perante o saber erótico da mulher e do poder que  isso pode representar, como as mulheres de Agustina Bessa-Luís – mulheres da mesma proveniência geográfica e social – não deixam nunca de mostrar. São estes arquétipos do masculino e do feminino, presentes em A Cidade e as Serras, que acabam por gerar não apenas muitos dos equívocos que se estabelecem nas relações entre mulheres e homens, como criam as condições psicológicas de muitas tragédias pessoais.

3. Um paternalismo virtuoso

O que representa Jacinto no seu retorno a Tormes? Ele emana de e reforça um certo arquétipo de homem condutor de destinos de uma comunidade. Volta do estrangeiro, fatigado com a depravação das grandes metrópoles, e deixa-se cativar pela virtude local, um misto de ingenuidade e de ignorância. O grande senhor convertido à virtude vai descobrir, horrorizado estética e eticamente, a miséria que impera nas suas propriedades. Prepara um grande plano de reforma, passando pela reconstrução de casas, até à construção de uma escola.

Jacinto é modelado como um homem providencial recto e justo, que distribui a cada um aquilo que ele, Jacinto, acha que merece. Ele é apenas e só um pai virtuoso. É um arquétipo político que, em Portugal, vem de trás e teve até hoje uma enorme fortuna. Mesmo que Jacinto se diga, a dado momento, socialista, para afastar de si suspeições de partidário de um ultramontanismo miguelista serôdio, o modelo onde assenta a sua figura não deixou de estar presente, por exemplo, em Salazar, ou já na democracia pós-74, em figuras como Eanes, Soares e Cavaco, mesmo Cunhal.

Qual a contrapartida deste arquétipo paternalista e virtuoso? Se ele é o homem activo que, pelo carácter e pelo sentido de justiça, coloca o mundo nos eixos, isto é, dá a cada um o que é seu, os outros apenas têm de esperar que chegue o homem virtuoso. A sorte da maioria depende da virtude de um só. Por isso, o esforço próprio, a iniciativa e a autonomia são inúteis. De facto, Jacinto não era um miguelista, mas também não era um liberal, naquele sentido em que acreditaria que cada um deve tomar a sua vida nas próprias mãos. Todo o drama de Portugal contemporâneo, do Portugal de hoje, está ali naquelas belas e afectuosas relações que o senhor Jacinto entretém com as pessoas de Tormes.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Cormac McCarthy, A Estrada


As pessoas estavam sempre a preparar-se para o futuro. Eu não acreditava nisso. O futuro não se estava a preparar para elas. O futuro nem sabia que elas existiam (p. 112).

Há uma estreita relação entre o acto de narrar e a compreensão da temporalidade. Tempo e narrativa são duas formas de discurso, e a narrativa romanesca é um discurso que capta, inscreve e cartografa o decurso - i e, o discurso - do tempo. A Estrada (The Road), um romance de Cormac McCarthy publicado em 2006, é uma estranha experiência devido ao espaço tomar o lugar do tempo como elemento articulado pela  narrativa. Se o tempo é enigma que a actividade romanesca tenta estruturar, para dele se ter consciência, o espaço, mesmo se desconhecido, é objecto de uma descrição como se ele estivesse articulado a priori, restando à arte o papel de o descrever. Ora A Estrada modifica esta situação. O tempo pura e simplesmente passa a um pano de fundo quase residual - como se depreende da citação que torna claro o divórcio do tempo com as pessoas -, onde uma ou outra analepse o manifesta, enquanto o espaço, tornado enigmático pelos acontecimentos, precisa agora de articulação narrativa para se tornar presença à consciência.

Após uma catástrofe que devastou a terra, pai e filho, ainda criança, fazem-se à estrada em busca do sul. A mãe desiste, a dada altura, perante a aparente inutilidade da viagem e suicida-se. A vida civilizada desaparecera e a vida, no sentido biológico, também. Restavam alguns homens e as ruínas das cidades que o fogo não tinha reduzido a cinza. Cormac McCarthy descreve aquilo que as teorias contratualistas do século XVII, nomeadamente a de Thomas Hobbes, chamavam estado de natureza. Um estado natureza que não é um imaginário estado anterior ao contrato social e à constituição de sociedades, mas uma irónica e trágica situação posterior à vida civilizada e à existência de sociedades. O que restava de seres humanos sobre a terra não formava uma sociedade, mas a encarnação dos princípios da guerra de todos contra todos e do homem como lobo do homem. No romance de McCarthy, esta ideia não é uma mera metáfora mas descrição literal da nova situação sobre a terra. Finda a vida biológica nesta, desaparecidos plantas e animais, restava para alimentar os homens remanescentes da catástrofe a comida conservada e outros homens, em especial crianças. O espaço é cartografado a partir desta nova realidade. Pai e filho viajam para Sul, mas o importante é evitar o contacto com outros seres humanos, procurar lugares onde se ocultem, onde possam fazer fogo sem serem avistados. A escrita espacializa-se para reconstruir o topos que a catástrofe desfizera, para reconfigurar sentido às cidades e campos devastados, sentido sempre ligado à sobrevivência e à busca de comida.

Se o espaço é fundamental, já o tempo perdeu sentido. O calendário desapareceu, desapareceram as divisões da temporalidade. Não sabem, pai e filho, o dia da semana, o mês ou o ano. Escrito numa altura em que ainda se ouviam ecos da tese do fim da história, de que Francis Fukuyama foi a última voz, este romance representa um efectivo ensaio no pós-história. A tese de Fukuyama tem, aparentemente, pouco a ver com isto. Refere-se à ausência, depois da morte do fascismo e do socialismo, de uma alternativa civilizacional ao liberalismo. O que Cormac McCarthy mostra é que a pós-história é uma distopia, um espaço privado de tempo, uma quase impossibilidade de vida, muito longe dos devaneios utópicos de uma sociedade liberal consumada. Não quer dizer que alguns traços do liberalismo não permaneçam na nova situação. A concorrência pela possibilidade de viver torna-se drástica e o espaço para a solidariedade entre os homens, para o espírito de comunidade e do seu bem, é nulo.

A Estrada pode ser lida assim como uma terrível alegoria das sociedades liberais, certamente sobre a vida nos Estados Unidos. Esta alegoria tem por referente metafórico a devastação comunitária. Os centros de poder legítimos são substituídos pela força de grupos nómadas que pura e simplesmente se unem para caçar outros homens como fonte de alimento. Há um estranho paralelismo entre estes grupos do romance distópico de McCarthy e os novos poderes mundiais, poderes sem rosto, nómadas, evanescentes, que administram a vida planetária através do espaço virtual. Poderes que actuam como caçadores furtivos e cujo objecto de caça são os próprios homens, os seus rendimentos e os seus parcos haveres. A Estrada manifesta-nos, ou profetiza, o significado de viver quando a comunidade é destruída e devastada. A catástrofe que destruiu a civilização na Terra nunca é identificada pelo autor. Foi um acontecimento. Foi o acontecimento que deu origem ao novo mundo, mas ele fica sempre impreciso. Catástrofe nuclear? Não há uma única referência ao medo de radiações. A catástrofe inicial e o fogo que, posteriormente, reduz parte substancial do planeta a cinzas podem ainda ser lidas como metáforas do fogo interior, da razão que o homem transporta em si, mas de um fogo interior e de uma razão pervertidos. A perversão desse fogo doado por Prometeu aos homens talvez seja a verdadeira causa que gerou a situação descrita. Não é a perversão da razão o princípio de devastação das comunidades humanas?

A Estrada é o romance de uma viagem. Quando na cultura ocidental a literatura toca a temática da viagem, o modelo prototípico que de imediato nos ocorre é o retorno de Ulisses a Ítaca. Contudo, há uma outra viagem que tem um papel central na cultura do Ocidente. Esta é narrada em Mateus 2: 13-23. Trata-se da fuga da sagrada família para o Egipto, depois da adoração dos magos e perante a ameaça de Herodes matar o Menino. Não é a de um retorno à pátria como a de Ulisses, mas uma viagem, dentro da economia e da história da salvação, de protecção do princípio de esperança representado pelo filho da Virgem Maria. Também a deslocação para o Sul narrada por Cormac McCarthy tem esse sentido. É uma variação desse modelo, estranha variação onde a mãe, em desespero, escolhe a morte em vez de prosseguir caminho, e abandona o cuidar da criança ao pai e a esperança ao próprio filho. O rapaz é levado para um sítio onde talvez fosse possível fugir ao cruel destino de ser devorado por outros homens. Isso não seria apenas a salvação da criança, mas permitiria a preservação do fogo, pois ela era o transportador do fogo - fogo da razão e fogo do bem - oferecido aos homens por Prometeu, um fogo novamente puro e inocente, não pervertido pelo uso egoísta e solipsista das sociedades contemporâneas. Que o pai morra à chegada a esse Sul mítico, mas também devastado, e o rapaz encontre casualmente uma família de acolhimento representa um princípio de esperança para os homens, apesar da devastação cruel que sobre eles caiu. A viagem é, sem que alguma vez tal se refira, um exercício sobre as virtudes teologais. O amor do pai pelo filho alimentou a fé que permitiu preservar a esperança.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Michel Houellebecq, Submissão


Li o livro de Houellebecq mal saiu em França, há cerca de dois anos, pois a temática, pelo menos em aparência, o crescimento da influência islâmica na Europa, interessava-me e interessa-me. No entanto, não escrevi de imediato sobre ele, pois havia ali qualquer coisa que me levou a suspender a escrita. Estava muito próximo de certos acontecimentos – o massacre no Charlie Hebdo – e havia, e há nele, demasiado clara, a afirmação de uma tese com repercussões políticas. Queria afastamento para falar do livro a partir de uma perspectiva menos politizada. Talvez não seja de todo possível, pois a trama gira em torno de umas futuras eleições presidenciais francesas, no ano de 2022, em que uma coligação republicana, para derrotar Marinne Le Pen, faz eleger um candidato muçulmano, Mohammed Ben Abbes, de uma hipotética Fraternidade Muçulmana.

Mais que a questão política, porém, a obra de Houellebecq trata da relação entre tradição e modernidade e, inerente a esta relação, a questão da identidade, da construção de uma subjectividade e o seu estilhaçar na ausência dos mecanismos sociais inerentes às sociedades tradicionais. A narrativa gira em torno de um universitário francês, François, especialista em Joris-Karl Huysmans, um escritor decadentista do século XIX. Esta conexão entre François e o decadentismo é central. O pessimismo de Huysmans é retomado por François e as características de Jean des Esseintes, o herói do romance À Rebours, de Huysmans, marcado pela atitude decadentista, pelos modos e caprichos de um esteta e, fundamentalmente, pela repulsa sentida perante a modernidade são elementos caracterizadores do próprio herói de Houellebecq.

Para se compreender plenamente o que está em jogo é preciso retornar ao processo iniciado no princípio da modernidade, no qual os homens, lentamente, se vão libertando das massas – clero, nobreza e povo – que lhes dão sentido e uma direcção existencial e vão afirmando, ao longo dos séculos posteriores, a pretensão à individualidade, escorada na subjectividade e numa existência livre. François é o resultado deste processo. Ao entrar na meia idade, tendo uma vida fundada no mais exacerbado hedonismo, confronta-se com um vazio existencial, uma vida sem sentido, um exemplo do niilismo que se apoderou das elites intelectuais de França e, por extensão, do Ocidente. Perante este panorama e algumas peripécias da vida privada, chega a tomar em consideração o suicídio.

Este quadro torna patente uma certa visão da modernidade. Apesar das conquistas no campo tecnológico, o homem moderno chegou a um impasse, perante a dissolução da própria modernidade e das suas instituições. O seu corte com a tradição proveniente da Idade Média, ao dar-lhe a possibilidade de assumir uma individualidade em ruptura com um destino determinado pelo nascimento, retirou-lhe a substância, esvaziou-o e fê-lo entrar na mais crua das errâncias. François entretém-se a seduzir alunas, embora aquela a que se sentia ligado, sendo judia e perante o novo quadro político, acaba por o abandonar e refugiar-se em Israel. A modernidade, vista no século XXI, tornou-se um absurdo. Este absurdo corrói a consciências das elites e também as camadas populares, absurdo que culmina no niilismo.

> A salvação do homem ocidental – no caso, francês – revela-se então, no romance Houellebecq, num retorno e submissão à tradição. Não à tradição cristã, que deu forma à cultura europeia, mas ao Islão. A vitória do candidato islâmico contra as pretensões de Marinne Le Pen tem o condão de pôr fim à guerra civil larvar entre grupos de radicais islâmicos e grupo identitários. Ben Abbes tem o talento suficiente para uma governação ao centro, não rompendo assim com os hábitos franceses, e toma um conjunto de medidas que vão consolidar o seu poder e o triunfo do Islão em França.

Este triunfo, contrariamente ao medo que assola os europeus, não é feito pela violência, mas por um vulgar jogo político, uma aliança legitimada pela ameaça da vitória da extrema-direita. A vida torna-se pacífica, o desemprego desaparece, pois as mulheres deixam de poder trabalhar, a aparência das pessoas nas ruas torna-se um pouco mais recatada. Para além de remeter as mulheres para o lar, apenas duas medidas são tomadas que indiciam que alguma coisa mudou. A islamização da universidade, acompanhada por um generoso aumento das remunerações, e a permissão da poligamia. Para se poder ensinar na universidade é necessário converter-se ao Islão. François, independentemente das motivações egoístas, encontra aí um sentido para a sua existência e converte-se como muitos dos intelectuais franceses. Um belo salário e a regularização dos impulsos hedonistas no âmbito de uma nova legalidade religiosa através da poligamia.

O Islão surge, deste modo, como a substância que dá consistência aos indivíduos. Inscreve-os numa tradição, regula-lhes as pulsões eróticas e estabelece um ordenamento natural entre homem e mulher. Esta nova ordem penetra pacificamente na sociedade pois, subentende-se, vai ao encontro do desejo profundo dos homens. Aquilo que Houllebecq torna então patente na submissão de François, e da sociedade francesa, ao Islão é a indisposição surda dos homens com a evolução das relações entre géneros. Não há um protesto contra a remissão das mulheres para fora do mundo do trabalho, nem contra a assimetria e falta de reciprocidade implicadas na poligamia. E é este quadro que leva François a abandonar a ideia de suicídio, isto é, o niilismo.

Em resumo, a Europa, presa à sua pusilanimidade, à beira de suicidar-se, tem na tradição islâmica o instrumento para se reinventar e reassumir um papel no mundo. O romance apresenta assim um dupla face. Mostra como é possível um triunfo pacífico do Islão na Europa e, ao mesmo tempo, torna patente a cobardia e a venalidade das elites ocidentais, fundadas no niilismo produzido pela modernidade, agora em fase de decomposição. Como corolário, implícitas na trama romanesca, encontram-se duas teses. Uma de ordem política, a alternativa à islamização da França é a extrema-direita. Outra de ordem civilizacional, aliás presente num francês, René Guénon, da primeira metade do século XX convertido ao o Islão. A religião corânica é a saída para a decomposição do mundo moderno.

O romance, do ponto de vista literário, não é dos mais interessantes do autor. No entanto, está longe de ser um mero panfleto provocatório como pretendem alguns detractores. Também, apesar de situar a acção no futuro, não estamos perante uma obra a que se possa chamar uma distopia e inscrevê-la ao lado de romances como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou 1984, de George Orwell. Trata-se, na verdade, de um romance filosófico, uma meditação sobre o destino do Ocidente nos tempos em que vivemos.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Mikhaíl Bulgákov, A Guarda Branca


A generalidade dos romances acabam por se inscrever, de uma forma ou de outra, na história dos homens. A Guarda Branca, de Mikhaíl Bulgákov, toma essa história não apenas como pano de fundo longínquo, mas como o motivo central em torno do qual gira a intriga. Não se trata, todavia, de um romance histórico, mas da exploração do impacto da história na vida das personagens, os irmão Turbin, e da forma como ela desconstrói e reconstrói as identidades individuais e testa crenças e convicções, ao desagregar uma dada figura do mundo e fazer emergir uma outra, radicalmente diferente daquela que parecia constituir a própria e única realidade possível.

Os acontecimentos romanescos estão situados em Kiev, capital da Ucrânia, em finais de 1918. Nestas paragens, o rio da história entregava-se, naqueles dias, a grandes e perigosos redemoinhos, águas terríveis que nem o inverno russo conseguia gelar. Acordes finais desse delírio de sangue, aço e lama que foi a I Grande Guerra, onde a ordem que começara a desagregar-se em França, nos anos que se seguiram à Revolução de 1789, encontrava a sua definitiva certidão de óbito. Esse requiem, nas terras russas ou onde a influência russa chegava, era acompanhado pelos acordes triunfantes dos hinos que o exército vermelho, sem esquecer o sangue, o aço e a lama, fazia entoar, acreditando estar na aurora do mundo. É a natureza excepcional do ano que abre o romance: Era grande e terrível aquele ano, o de 1918 após o nascimento de Cristo e o segundo após o começo da revolução. Abundante de sol no verão e de neve no inverno; e dois astros brilhavam muito altos no céu: a Vénus nocturna, estrela de pastores, e Marte vermelho e trémulo.

Não é, todavia, a tensão entre o amor e a guerra que está em jogo. A referência a Vénus funciona quase como um ideal longínquo naqueles dias onde a presença de Marte era excessiva, preenchendo todas as forças anímicas dos homens. A referência ao brilho de Vénus é, antes de mais, a indicação daquilo que, secretamente, ecoava no coração humano. Os irmãos Turbin - Aleksei, Elena e Nikolka - são partidárias da velha ordem czarista e vêem com preocupação a frágil situação de Kiev. O amor encontra-se em estado de suspensão. O governo do hetman Pavlo Skoropadsky, um homem de mão dos ocupantes alemães, tenta congregar forças para fazer frente à ameaça nacionalista ucraniana comandada por Simon Petlyura e, também, ao exército vermelho. Os acontecimentos narrados centram-se nos dias em que as forças nacionalistas ucranianas tomam conta de Kiev.

A fuga dos alemães e a cobardia do Estado-Maior do Exército Branco deixam a cidade nas mãos dos nacionalistas. Bulgákov expõe detalhadamente o conflito que cinde as forças leais ao czar e aos princípios aristocráticos. O que se joga naquele turbilhão é menos o confronto militar mas a desagregação do conceito central da ordem aristocrática, a honra. A honra e a desonra jogam-se perante a adversidade, o inimigo e a morte. As chefias fogem vergonhosamente, abandonando e traindo as forças leais à velha ordem. O contraponto é dado pelos Turbin e alguns amigos. Contudo, se a cobardia atraiçoa de forma infame homens, ideias e deveres, a honra surge já com um valor inútil, pertencendo a um passado condenado a não voltar. As forças de Simon Petlyura acabarão derrotadas pelo exército vermelho e pelos novos valores, valores ainda em formação e retratados quase de forma surrealista, como emergência de um sonho, e que trazem, por instantes, um novo sentido sobre a terra.

A história surge assim como uma grande catástrofe natural. A questão central é sobreviver sem perder demasiado a face, recompondo a vida, até que ela, a vida, se esqueça de nós e dos valores que encarnámos e que, possivelmente, guardámos como uma recordação de um passado morto, mas que se visita nas horas de nostalgia. Um dos problemas que se podem colocar neste tipo de narrativa é o da verdade. Será que a narrativa de Bulgákov retém a verdade histórica dos acontecimentos? A questão tem dois aspectos. O primeiro diz respeito à própria noção de verdade histórica. Se há coisa que é disputada em história é o locus a partir do qual se pode instituir um regime veridiccional que permita ajuizar da verdade ou não das narrativas históricas – essas mesmas que pretendem o estatuto de cientificidade. Este é um problema que pertence à epistemologia da história ou a uma meta-história, não diz respeito ao romance.

Se narrativa romanesca e narrativa histórica se cruzam, como é o caso de A Guarda Branca, o elemento desse cruzamento é o tempo e não a verdade. São duas formas de tratar a temporalidade, de a estruturar através do discurso. Seja qual for o princípio veridiccional que se adopte para julgar da verdade das narrativas históricas ele será sempre estranho à ficção romanesca. O facto de um romance ser ficção desliga-o de um compromisso com a verdade? Será a verdade uma virtude apenas dos discursos científicos e cognitivos? A resposta a ambas as questões é não. No entanto, o locus veridiccional da narrativa romanesca reside numa atitude do leitor sublinhada por Coleridge: a suspensão da descrença. É esta atitude que determina a verdade ficcional.

A verdade de A Guarda Branca e dos acontecimentos que envolvem os irmãos Turbin não se encontra na adequação da narração a factos supostamente ocorridos, mas na capacidade que Bulgákov tem de levar o leitor a suspender a descrença na narrativa. O que está em jogo não é se algo se passou daquela maneira, mas se está narrado de forma a que se acredite que se poderia ter passado. É uma questão artística e não factual. E Bulgákov, neste seu primeiro romance, é já um artista consumado. Quem ler o episódio da milagrosa cura de Aleksei - condenado à morte pela impotência da medicina - devido à oração de Elena à Virgem, em momento algum sente qualquer necessidade de voltar a um regime de verdade que questione o milagre. O conjunto de processos narrativos a que Bulgákov lança mão constroem a verdade de uma ficção. A verdade ficcional é também ela uma ficção, no sentido de uma fabricação que nos leve a suspender a descrença e a confrontar-nos com o texto e, para falar à maneira de Paul Ricoeur, o mundo que ele propõe; neste caso, olhar as metamorfoses de si-mesmo, de vários si-mesmos, sob a tempestade da história.