sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Jonathan Littell, As Benevolentes


O título do livro de Jonathan Littell, As Benevolentes (Les Bienveillantes, no original francês), coloca a obra sob a égide de Ésquilo e da Oresteia, isto é, da tragédia clássica grega, o que é acentuado pela dimensão musical presente na denominação dos capítulos (Toccata, Allemandes I e II, Courante, Sarabanda, Minuete em rondó, Air, Giga). O que nos pode indicar que, em última análise, estaríamos, com a violência desencadeada pelo nazismo, perante a emergência transbordante, no palco do mundo, das forças dionisíacas, com os seus grandes cortejos dançantes de horror e sangue.

Por outro lado, a matéria da narrativa, os acontecimentos da II Guerra Mundial, e a mescla de personagens fictícias e de personagens reais colocam o romance na categoria de romance histórico. A história seria agora contada por um daqueles que perdeu, Maximilien Aue, um oficial das SS, por um dos inúmeros carrascos que levaram a morte a milhões de pessoas em nome de uma ordenação do mundo segundo uma delirante hierarquia rácica. A figura do carrasco não deve ser lida como mera metáfora indiciadora de um comportamento de violência extrema. Deve ser tomado no sentido estrito do funcionário encarregado de executar uma sentença de morte.

Vale a pena recordar a caracterização feita pelo conde Joseph de Maistre, em Les Soirées de Saint-Petersbourg, da figura do carrasco (ler o excerto). É uma figura inexplicável pela lógica humana, evidenciando, na verdade, uma eleição divina, e, ao mesmo tempo, é o horror e o laço que permitem aos homens viverem uns com os outros. Sem ele, “a ordem dá lugar ao caos, os tronos precipitam-se no abismo e a sociedade desaparece”. O carrasco é, pelas características sublinhadas por Maistre, uma figura apolínea, cuja função é assegurar que as sociedades continuem a funcionar, eliminando aqueles que as põem em perigo. Apesar do temor que provoca nos homens e do horror da sua profissão, ele tem prazer na qualidade do trabalho que executa, na sua eficiência e eficácia, no cumprimento estrito do dever.

O que torna o romance de Littell particularmente interessante é o casamento das forças dionisíacas e apolíneas nos nazis alemães. A personagem de Maximilien Aue serve para uma longa meditação narrativa sobre a natureza do carrasco. O oficial SS constitui-se como arquétipo de todos aqueles que acreditaram ser sua missão no mundo eliminar todos os que, por natureza racial ou por convicção ideológica, se opunham à sociedade distópica nascida na mente dos responsáveis políticos nazis. Nele confluem, em tensão, tanto na vida pessoal como na acção político-militar, as pulsões dionisíacas e a inclinação apolínea.

A construção da vida pessoal de Aue, decalcada da Oresteia, tem por fundo o desaparecimento do pai e o ódio que devota à mãe, que acusa de ser responsável pelo abandono a que a família foi votada. Do pai, na verdade, nada se sabe, mas Maximilien parece estabelecer, pelo menos inconscientemente, uma analogia entre o desaparecimento do pai e a morte de Agamémnon às mãos de Clitemnestra, sua mulher, e de Egisto, o amante desta, na primeira peça da Oresteia. Ele é um Orestes abandonado que possui um ódio nunca disfarçado à mãe. Embora, o romance nunca o esclareça, tudo indica que Maximilien seja o responsável pelo assassinato da mãe e do padrasto, numa reactualização da tragédia de Ésquilo.

Esta dimensão da formação do carácter da personagem principal é completada pela relação incestuosa que mantém com a irmã gémea Una. Esta acabará por ultrapassar a situação e colocar o incesto como uma mera experiência do passado que não pretende repetir. Max, porém, nunca abandona o desejo de união e de fusão com e na irmã. Este desejo frustrado de se perder na fêmea original (Una remete para a ideia de uma unidade primordial, para uma indistinção entre o masculino e feminino) é o outro lado da sua sexualidade marcada pela homossexualidade, na qual ele, ao entregar-se passivamente a outros homens, acaba por se reencontrar como sendo a sua própria irmã gémea.

Toda esta dimensão trágica, marcadamente dionisíaca, tem contudo uma contrapartida apolínea. Esta dimensão residirá menos no Max Aue que escapa, no pós-guerra, à Alemanha e à punição, casando em França, constituindo família e dirigindo os seus negócios, do que na sua formação. A formação em direito e o interesse na área da filosofia – para além de uma cultura alargada no campo da literatura e da música – dão ao narrador e protagonista da obra uma dimensão de racionalidade adequada à pulsão apolínea. No entanto, esta pulsão apolínea não se manifesta na ordem moral ou política severa, mas na dimensão técnica, na eficiência com que se entrega às suas funções de oficial das SS, sejam essas as de matar ou as de calcular como tornar os campos de concentração mais eficientes para o esforço de guerra nazi.

O romance de Littell permite deste modo encontrar uma explicação para o mistério da função do carrasco, mistério esse sublinhado por Joseph de Maistre. De um ponto de vista abstracto, poder-se-á dizer que o carrasco resulta de uma combinação das pulsões dionisíacas com as apolíneas, mas onde as primeiras, com todo o seu desejo de destruição das formas e das diferenças, não são contidas pelas segundas, as quais abandonam a sua preocupação com a ordem moral e política do mundo, como acontecia na antiguidade clássica, para se concentrarem nos aspectos técnicos da acção no mundo.

O carrasco é, na verdade, uma figura metafísica tal como a intuíra Joseph de Maistre, mas não por ter sido o resultado de uma escolha divina. O carrasco é o resultado de um desequilíbrio entre as forças destruidoras e caóticas do dionisismo e das forças racionalizantes e ordenadoras da dimensão apolínea. Este desequilíbrio, na idade moderna, manifesta-se pela sujeição da razão à técnica. A razão não serve agora para suster as pulsões destrutivas mas para as tornar eficazes, trazendo uma ordem à produção do caos. O carrasco é o resultado de uma falência das forças formadoras do indivíduo. Num tempo em que a quantidade se sobrepôs à qualidade, o nazismo significou a multiplicação dos carrascos, transformando milhões de seres humanos aparentemente normais nessa figura sinistra, da qual todos se afastam.

A formação do carácter de Maximilien Aue é apenas uma parte do romance. A outra é a da sua acção. O leitor acompanha o percurso do oficial nazi na frente Este. Da Ucrânia a Estalinegrado, Jonathan Littell dá a ver a organização meticulosa do exercício da função punitiva que cabe aos carrascos. No caos da guerra, na grande dança báquica que é todo o conflito militar, Aue e os outros oficiais alemães emergem como um princípio de racionalidade. Ora esta racionalidade técnica – a procura de eficácia no combate, no genocídio e na prática de outros crimes de guerra, bem como na organização dos campos de concentração – está ancorada em duas ideias centrais. Em primeiro lugar, a convicção de que os alemães são não um povo eleito mas o povo eleito. Esta eleição permite-lhes tudo para ordenar o mundo segundo essa crença. Tamanha fé, como toda e qualquer grande fé, traz com ela um dever ser, um imperativo ou mandamento que ordena agir em conformidade com aquilo em que se crê.

Os crimes não são, desse modo, para os nazis e para o próprio Aue, apesar da sua sofisticação intelectual, crimes mas o mero cumprimento do dever. O que poderá haver de repugnante na prática de certo tipo de acções – fisiologicamente repugnante, sublinhe-se – com a continuidade torna-se um hábito, e um hábito, como ensinou Aristóteles, é uma segunda natureza. Esta conjugação da crença na eleição do povo alemão, com a concomitante desqualificação dos não alemães à condição de sub-humanos, e do dever que a razão deduz dessa crença conduz-nos a uma consciência não atormentada pelo mal praticado. E este é o ponto central. A acção de um carrasco só é possível porque, na sua consciência, se legitimou o direito a torturar, violentar e executar todos aqueles que a ordem política nomeia como objectos do seu trabalho. É essa consciência que permite a Maximilien Aue dizer, logo no início do romance, que  desde “o fim da guerra mantive-me um homem discreto; graças a Deus, nunca tive necessidade, como alguns meus ex-colegas, de escrever as minhas Memórias com intuitos de justificação, porque nada tenho a justificar”.

O que Jonathan Littell nos dá a ver é a formação e o funcionamento, num singular cruzamentos de pulsões dionisíacas e de inclinações apolíneas, da consciência do carrasco. O mal que este pratica não lhe afecta a consciência e, por isso, não sente quaisquer remorsos ou necessidade de justificação ou de prestação de contas. E não o sente porque as suas acções dimanam de uma ordem supra-pessoal, provêm do poder político, ao qual os agentes se limitam a obedecer, pois esse é o seu dever. Como diz Aue: “Não me arrependo de nada; fiz o meu trabalho, e foi tudo”. Em última análise, através da figura de um carrasco, daquele que pratica o mal por dever, somos colocados perante o enigma do poder político, o qual assenta no carrasco e, por isso, o legitima.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Julian Barnes, O Sentido do Fim


A tradução portuguesa do título talvez perca alguma coisa presente no original inglês, The Sense of an Ending. Não por ter traduzido sense por sentido e não por sensação ou sentimento. O romance de Barnes é, de certa forma, um inquérito e, como tal, o termo sentido reenvia para um processo de racionalização, enquanto as outras traduções possíveis abririam a interpretação para uma perspectiva de ordem afectiva, algo que, na intriga romanesca, não está em jogo. A questão surge na tradução de an ending por (d)o fim. O leitor pode imaginar que, estando o narrador/protagonista, Anthony Webster, na parte final da vida, o fim que está em jogo seja o dessa própria vida. No entanto, o inquérito, que vai permitir pensar essa vida, visa apurar o sentido do desenlace de uma outra vida, de um amigo de Webster que se suicidou há 40 anos. Qual o sentido daquele desenlace? Quais as responsabilidades do narrador nesse desenlace? Como esse acontecimento afecta a imagem e a verdade que tem de si mesmo? A utilização, em inglês, do artigo indefinido remete para uma indeterminação do sentido desse desenlace, o que é mais consentâneo com este questionamento do que o artigo definido da tradução portuguesa.

Surpreendentemente, nas recensões críticas que li da obra, nenhuma a mostrava como mais uma variação de O Estranho Caso do Dr. Jekill e Mr. Hyde. Não se trata de refazer, em termos contemporâneos, a experiência científica que teria levado à cisão do afável Dr. Jekill e a concomitante segregação do seu alter-ego, o tenebroso Mr. Hyde. O que está em jogo é a descoberta, passados 40 anos, daquilo que no protagonista e narrador, Anthony Webster, havia de Mr. Hyde, e que nunca tinha sido reconhecido, permanecendo recalcado ao longo de toda uma vida.

O romance está dividido em dois momentos. No primeiro, anos sessenta, narra-se a vida de um grupo de amigos, no seu tempo de liceu, a irreverência, a prosápia, as pretensões excessivas, enfim tudo aquilo que acompanha o excesso hormonal da primeira juventude. Julian Barnes, contudo, dá uma imagem dos anos 60 bastante diferente da habitual. A libertinagem sexual, o consumo de drogas, a liberdade irrestrita de uma juventude mais ou menos dourada - imagens de marca desses anos - são vistos de forma bastante mitigada e quase como fenómenos marginais. A maioria dos jovens não viveu aquele tipo de vida, pelo contrário. A moral era tradicional e a liberdade sexual raramente chegava à consumação de uma relação genital. É nesta época que decorrem os acontecimentos - uma visita a casa da namorada, um quase triângulo amoroso, o suicídio de um amigo, precisamente um dos vértices do triângulo - que vão estar no centro das preocupações do narrador e protagonista, quarenta anos depois.

O segundo momento começa, passados quatro décadas, com uma estranha herança. É a partir daí que se vai desencadear o processo que leva a uma reavaliação de si mesmo por Anthony Webster. A dado momento Barnes escreve: «Quantas vezes contamos a história da nossa vida? Quantas vezes adaptamos, embelezamos, fazemos cortes matreiros? E, quanto mais a vida avança, menos são os que à nossa volta desafiam o nosso relato, para nos lembrar que a nossa vida não é a nossa vida, é só a história que contámos sobre a nossa vida. Que contámos aos outros mas - principalmente - a nós próprios (p. 100).» O que está em jogo é - em primeiro lugar - o problema da verdade. Qual a verdade de uma vida? Como é que os acontecimentos vividos - os pensamentos, palavras acções e omissões - são retidos, catalogadas, inscritos no plano da veridicção. A verdade de uma vida surge como um texto, um texto sempre em aberto que, continuamente, pode ser editado, transformado, apagando ou acrescentando pormenores. Há um problema de difícil resolução na relação entre a narrativa que se faz de uma vida (seja o próprio ou terceiros) e a realidade substantiva dessa vida, como se a narrativa fosse, ao mesmo tempo, o lugar impossível de emergência dessa verdade e o único onde essa mesma verdade pode emergir. Uma verdadeira aporia. Usando o jargão filosófico, temos um problema ontológico e um problema epistemológico. Qual a efectiva realidade de uma vida? Que capacidade tem a narrativa para dizer a verdade dessa vida?

Se estas questões perpassam no texto de Julian Barnes, há ainda um terceiro problema filosófico, um problema de natureza ética. Qual a autenticidade com que me narro? Não se trata aqui de uma erro epistemológico, uma ilusão na apreciação da vida vivida, mas da distorção, mais ou menos propositada, dessa vida, o seu acomodamento ao que é confortável pensar sobre si mesmo. No romance em causa, os estratos ontológico e epistemológico (é evidente que estas palavras nunca ocorrem no texto de Barnes, uma pura narrativa romanesca) são o suporte da interrogação sobre a autenticidade com que os seres humanos se descrevem e se narram. Durante toda a vida, o protagonista recalcou o episódio que tornava manifesto o seu lado Mr. Hyde. Recorde-se a homofonia entre o nome próprio Hyde e o verbo hide (ocultar, esconder). A distorção dos factos é ainda uma expressão de um carácter distorcido, de alguém que lida mal com a veracidade do que ocorreu, que sente necessidade de a apagar, de a ocultar.

A questão ética da autenticidade liga-se a uma questão mais geral, a da identidade: Quem sou eu? Como se verá de imediato, a questão da identidade emparelha com a da avaliação de si: «Do ponto de vista de Adrian [o amigo que se suicidou na juventude], eu desistia da vida, desistia de a examinar, tomava-a  como a via. E assim, pela primeira vez,  comecei a sentir um remorso mais geral e aversão a mim próprio - em relação à minha vida toda. Toda. Tinha perdido os amigos da minha juventude. Tinha perdido o amor da minha vida. Tinha desistido das ambições que acalentara. Tinha querido que a vida não me incomodasse demasiado, e tinha conseguido - e como isso dava pena!» E logo de seguida acrescenta: «Mediano, era o que tinha sido desde que saí da escola. Mediano na universidade e no trabalho; mediano na amizade, lealdade e amor; mediano, sem dúvida no sexo (p. 104).»

O processo de uma vida examinada e avaliada é um elemento estrutural da arte romanesca. Para que haja narrativa e não mera descrição factual é necessária uma des-coincidência do protagonista consigo mesmo. É esta des-coincidência que torna a identidade problemática, imprecisa. Julian Barnes, ao tomar como narrador o próprio protagonista, fá-lo não como um narrador omnisciente mas como narrador impreciso, que se interroga, que acompanha o leitor na descoberta dos factos e da verdade. Anthony Webster descobre - mais do que as suas atitudes tortuosas e as possíveis implicações destas no suicídio do amigo - a verdade sobre si. No fundo, as pessoas sonham, nos primeiros tempos da juventude, desmedidamente sobre o seu destino. A generalidade fica pela mediania.

Na estratégia romanesca de Barnes, a descoberta da identidade como mediania está ligada à distorção dos factos ocorridos na longínqua juventude. A mentira a si mesmo e a composição de uma narrativa ocultadora de certos acontecimentos são elementos centrais desse ser mediano. A mediania nasce da traição a si mesmo. Contudo, a leitura não deve ficar por aí. A descoberta da verdade sobre si e a desocultação da sua identidade como ser mediano, medíocre, não são eticamente neutras. A verdade é uma pena infligida pela própria vida. Subtilmente, o autor revela o mecanismo de falência existencial: a mentira a si mesmo, uma mentira que nem os quarenta anos de vida corrente ocultaram definitivamente. O surpreendente é que se revela aqui um fenómeno nuclear no problema da identidade. A identidade não é meramente a questão da verdade de cada um. A procura dessa veracidade, enquanto exercício de avaliação de uma vida, é o caminho para o cerne da questão da ipseidade (termo usado em certas filosofias para a questão da identidade): o exame de si mesmo remete para a ideia de um juízo, de um julgamento, mas também de uma pena. No centro da nossa identidade não está o nosso ser verdadeiro, mas um processo de natureza jurídico-penal. A questão da identidade (quem sou eu?) nada tem a ver com a natureza do nosso ser mas com o processo pelo qual, ao julgar a vida vivida,  instituímos uma identidade que pode ser suporte de uma pena ou, eventualmente, de um recompensa. Um processo que, devido à natureza e à tradição da nossa cultura, apenas prescreve - se prescrever - com a morte do processado.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Mathias Enard, Bússola


Bússola, o sexto romance do francês Mathias Enard, prémio Goncourt de 2015, é uma obra que está colocada sob o signo do desconcerto. Este manifesta-se nas duas coordenadas essenciais da obra. A insónia e a bússola que em vez do Norte aponta o Leste, o Oriente. É neste enquadramento que Franz Ritter, um musicólogo de Viena, fascinado pelo Oriente, por Sarah, uma orientalista deambulante, e temeroso das opiniões da mãe e dos resultados que estão para vir de uns exames médicos, se vai entregar a um longo exercício de rememoração da sua vida e dos seus interesse. Esta rememoração – é sempre difícil fugir à tutela literária de Platão – é um questionamento sobre a verdade das relações entre o Ocidente e o Oriente, entre nós e o outro.

Estar num estado insone é encontrar-se em plena perturbação. Esta perturbação é marcada por uma ambiguidade. Por um lado, o estado vígil parece trazer uma grande lucidez racional ao espírito. Há na insónia uma racionalidade hiperbólica. Por outro lado, aquilo que alimenta a insónia é a impossibilidade de dominar razoavelmente os pensamentos, que se atropelam numa associação incontrolável. É este o estado de Franz Ritter, perturbado e em pleno desconcerto. Franz Ritter, porém, é a imagem do Ocidente actual, da sua perturbação e desconcerto. Um Ocidente que sofre de uma hipertrofia da razão e que, por isso mesmo, perdeu a razoabilidade e o controlo de si e da sua vida.

É neste estado que, entre as 23:00 e talvez as 7:00 da manhã seguinte, as relações do Ocidente e do Oriente são revisitadas. Revisitadas nas histórias de orientalistas e aventureiros que se deixam seduzir pelos países muçulmanos – da Síria à Pérsia – e por lá encontram, entre o triunfo e a morte, a razão de viver, mas também na dívida que a música – a grande música erudita – e a literatura ocidentais terão para com esse Oriente. O Oriente será então esse outro que está em nós e nos constitui. Contra a construção do muçulmano – a partir da experiência do terrorismo e dos acontecimentos dos últimos tempos – como um outro radicalmente diferente, Mathias Enard aposta, através do exercício de rememoração de Ritter, na suposição de construções identitárias fluidas, onde as contaminações são o essencial. Contra os muros da ideologia, o autor joga, segundo o próprio, a carta das pontes que ligam o que parece separado e diferente.

Esta intenção é corroborada por entrevistas de Enard. A questão, porém, é que as obras, ao serem publicadas, fogem ao autor. Este passa a ser um leitor entre outros dessas obras e a sua leitura, até porque enviesada, não possui mais autoridade que qualquer outra. Na verdade, esta apologia das pontes e da contaminação é colocada sob o signo do estado perturbado da insónia. Ela é o resultada de uma falência fisiológica. Ritter delira acordado. O próprio carácter da personagem – a sua dependência da opinião maternal, a sua timidez erótica, a sua fragilidade perante o médico – têm um efeito deletério em relação à intencionalidade explícita do autor. Há nele um excesso de desejo a que não corresponde uma vontade capaz de realizar o desejo. Efectivamente, ele é impotente para construir qualquer ponte, como se compreende da sua relação amorosa com Sarah.

Este desconcerto é acentuado com a história da bússola, uma lembrança oferecida por Sarah ao musicólo insone. Esta é duplamente desconcertante. Desconcerta porque aponta o Leste e não o Norte. Este desconcerto, porém, é fruto de um outro. É causado por um truque na construção da bússola, onde a agulha magnética está oculta sob o mostrador, estando visível uma agulha falsa acoplada à primeira de tal forma que quando a agulha invisível aponta o Norte a que se vê aponta o Leste. A metáfora da bússola mostra-se assim mais complexa do que parece. O que ela nos diz é que toda essa atracção dos ocidentais pelo Oriente, toda a construção de pontes e de identidades fluidas fruto da contaminação, tudo isso é resultado de um truque, de um engano, de uma falsificação. Mais do que a grande erudição invocada pelo autor – Pessoa, por exemplo, é visita frequente – ou as descrições desse oriente, o que fará a fortuna do romance de Mathias Enard será o desconcerto entre a intenção proclamada pelo autor e o poder de a contrariar que as metáforas usadas – a insónia e a bússola – possuem na economia narrativa. Talvez um autor nunca devesse abrir a boca sobre a obra que produz. Talvez.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Herta Müller, Hoje preferia não me ter encontrado


Se se disser que o romance Hoje preferia não me ter encontrado, de Herta Müller, é um retrato da Roménia comunista sob a dominação de Ceuasescu, diz-se a verdade e, no entanto, falha-se o essencial. Não é um romance de denúncia política mas a revelação de um modus vivendi, como acontece nos regimes totalitários, em que a política se imiscui em todos os aspectos da vida privada. Publicado pela primeira vez em 1997, numa época onde, no Ocidente, o domínio público estava já sob a ameaça dos interesses e pontos de vista meramente privados (a célebre dissolução, que ainda não parou, da esfera pública), a obra de Herta Müller reenvia para uma experiência totalmente diferente, de natureza orwelliana: o Estado interfere nos mais ínfimos pormenores da intimidade.

Não há obra romanesca que não seja um diálogo com o cânone literário. Este romance não foge à regra. A anónima protagonista e narradora é intimada, mais uma vez, para se apresentar na sede da polícia política do regime. O romance é composto por duas narrativas paralelas que se encontram não no infinito, mas no próprio acto de narrar (talvez a narrativa seja o infinito mais próprio do homem). Narra-se a viagem de eléctrico de casa à sede da Securitate e, ao mesmo tempo, é narrado o fluxo de consciência da própria narradora, onde flui a sua vida passada e presente, a vida dos que lhe estiveram próximos, o retrato do país. Se a intimação e as contínuas apresentações na polícia política (o motivo liga-se ao envio ao acaso de bilhetes, onde se oferecia em casamento, nos bolsos de calças exportadas para Itália) remetem para o arquétipo do Processo de Franz Kafka, já a viagem - ou a dupla viagem, a de eléctrico e a memorial - tem o seu paradigma na Odisseia, de Homero, a viagem de retorno de Ulisses à pátria.

A viagem de eléctrico é, já por si, uma alegoria da vida na Roménia, alegoria fundada no arbítrio do guarda-freio, na forma despótica como gere o eléctrico, como dispõe da viagem dos passageiros. Mas essa viagem, com o seu equívoco final que conduz a uma subtil revelação que ameaça enlouquecer a protagonista, é o suporte para uma outra no próprio fluxo da consciência. Vale a pena convocar para a leitura a relação do tempo com a consciência, segundo Santo Agostinho. Para este existe um triplo presente. O presente do passado, a memória, o presente do presente, a visão, e o presente do futuro, a expectativa. A viagem de eléctrico entre casa e o edifício da polícia política é o presente do presente, a visão in loco do que ocorre, a presença imediata à consciência de um conjunto de pequenas peripécias que atestam a natureza distópica da própria realidade social. A substância da narrativa, contudo, está ligada ao presente do passado. Ela é uma presentificação desse passado pelo exercício da memória. Através de um sem número de analepses, recordações e de histórias laterais, a memória convoca a vida da protagonista e da própria sociedade romena. Ao torná-la presente, a memória, através da narrativa, oferece uma intuição quase visual da natureza sórdida da vida na Roménia comunista. Sordidez proveniente do imiscuir do Estado na vida privada, mas também sordidez resultante da corrupção do carácter das pessoas trazida pela a acção deletéria do Estado totalitário.

A identidade é uma construção que vamos aprendendo a estabilizar. A estabilidade provém da confiança com que nos relacionamos com a envolvente social. Se ela permanece continuamente equívoca e ameaçadora, não há quem seja capaz de construir uma persona sólida. O facto da protagonista/narradora não apresentar nome é já um indício de uma perturbação da identidade. O título do romance introduz uma maior equivocidade: Hoje preferia não me ter encontrado (Heuter wär ich mir lieber nicht begegnet). O título resume as duas viagens, a do eléctrico e a memorial, como um encontro consigo mesma. Parece estarmos perante a solidificação de uma identidade, a afirmação de uma subjectividade, a da narradora/protagonista, plenamente definida e assumida. No entanto, a referência negativa (preferia não...) ao encontro consigo mesma desfaz essa conquista de uma identidade.

Se Ulisses no fim da viagem encontra os braços de Penélope, se Joseph K, apesar de não saber de que era acusado, foi executado, o que deu uma razão teleológica ao seu processo (os processos não são instaurados porque se fez qualquer coisa que mereça uma pena, mas porque uma pena no fim do processo o justifica a posteriori), a protagonista/narradora anónima não ganha um nome no fim da sua viagem. Pelo contrário, o que o acaso da viagem lhe traz é uma desconcertante revelação, tão subtilmente exposta no texto que muitos leitores não dão por ela, sobre a pessoa em quem ela mais confia (revelação que surge como suspeita da mais crua intervenção do Estado na intimidade). O livro acaba com a frase: "Ah, ah, enlouquecer, não." A sentença final remete-nos para o terceiro presente de Santo Agostinho, o presente do futuro. A única expectativa que se abre a alguém, num regime totalitário onde a acção do Estado tudo controla e tudo corrói, é a de não perder a razão.  Não se trata já de solidificar uma subjectividade, de moldar uma identidade. Trata-se apenas de não enlouquecer. Imaginar, porém, que os regimes totalitários são os únicos que conduzem os homens a tal situação é enganarmo-nos sobre a natureza da literatura. Um regime totalitário num romance ainda é uma metáfora (ou uma alegoria, que não passa de um conjunto de metáforas) que deve ser lida enquanto metáfora, no desconcerto lógico que toda a verdadeira metáfora introduz.

Divida-se o processo metafórico em dois momentos. No primeiro, temos a metáfora expressa, neste caso "regime totalitário". Dar-lhe-emos o nome de metaforizante. No segundo, aquilo que foi substituído pelo metaforizante, o metaforizado. O metaforizado não é nada de definido, não é um termo próprio e adequado, mas um espaço vazio que o metaforizante veio impropriamente ocupar, estabelecendo-se como metáfora, conferindo uma significação inesperada e estranha ao discurso. Se o "regime totalitário" do texto é também uma metáfora, cabe ao leitor preencher o lugar vazio, o metaforizado, onde o metaforizante "regime totalitário" se veio instalar enquanto metáfora. Dito de outro modo: o que é que esta metáfora do "regime totalitário" dá a ver das nossas vidas que não decorrem, segundo a classificação habitual dos regimes políticos, em nenhum regime totalitário? Será isto pertinente? Se o livro foi publicado em 1997 na Alemanha, numa editora alemã, escrito em alemão, podemos suspeitar que a obra, ao tratar da vida na Roménia, esteja a meditar sobre a vida dos homens em geral, nomeadamente nos países ocidentais, talvez mesmo em qualquer lugar.