domingo, 27 de novembro de 2016

Anton Tchékhov, O Duelo


O Duelo, novela de Anton Tchékhov, tem uma natureza polifónica, resultando a intriga da conjugação das diversas perspectivas narrativas que ora se confrontam ora se conciliam, em busca de uma reconciliação final. A obra data de 1891 e coloca em confronto, numa pequena cidade do Cáucaso, um funcionário público com formação superior, Ivan Laévski, símbolo da preguiça e da devassidão, e a sua amante, Nadejda Fiódorovna, uma intelectual volúvel e instável que abandonara o marido por Laévski, com o zoólogo, von Koren, que transporta os valores iluministas próprios do terceiro estado. Este confronto é mediado por um médico militar, Aleksandr Samóilenko, generoso e de origem aristocrática, e por um jovem diácono em início de carreira eclesiástica, representante da fé e do amor crístico.

Tchékhov explora o papel do ódio e da traição no processo de reconhecimento de si e de conversão aos valores socialmente aceites, os valores da família e do trabalho. A conduta de Laévski e de Fiódorovna não atrai apenas a má-língua dos meios sociais onde se movem, mas o ódio e o desprezo explícito do cientista perante a falsidade daquele tipo de existência. O que é uma vida autêntica? Esta é a interrogação que funda a intriga. O rigor do homem que busca a verdade, von Koren, a sua exigência de autenticidade, são desafiados pela falsidade existencial do casal desviante. Que o paladino da autenticidade e veracidade existenciais humanas seja um zoólogo, isso não significa apenas cobrir essas exigências com o prestígio da verdade, ideal regulador da praxis científica. Essa transposição da verdade, presente na construção das taxonomias zoológicas, para o comportamento humano significa ainda uma subtil ironia acerca da condição humana e da sua própria verdade.

Esta estratégia irónica de relativização da posição de von Koren é corroborada por uma confrontação lateral ao conflito central da novela. A intransigência do cientista perante Laévski surge em confronto com a bonomia e condescendência de Samóilenko e a caridade, em pleno duelo, do diácono perante o mesmo Laévski. Esta pluralização de atitudes tem a função de fazer ressaltar mais claramente a natureza do zoólogo, ao mesmo tempo que sublinha os limites desse novo mundo que começa a emergir na Rússia, e que triunfara há um século atrás em França.

A conversão de Laévsky aos ideais do trabalho e da família é mediado por dois momentos onde a verdade surge como alétheia (ἀλήθεια), isto é, como desvelamento ou desocultação, para retomar a interpretação do termo grego feita por Martin Heidegger. No primeiro momento, Laévsky constata o ódio e o desprezo do zoólogo, o que conduz directamente ao momento agónico da narrativa, o duelo entre os dois. Essa primeira revelação prepara a segunda, onde descobre - não por uma informação de terceiros mas porque terceiros o levam a presenciá-la em acto - a traição da sua amante. Ele que se preparava para a abandonar, cansado dela, acaba por ter, naquele instante e perante a verdade da volubilidade dela, uma epifania do seu amor por Nadejda Fiódorovna.

O duelo surge como um momento de morte e de ressurreição para Laévski. Von Koren não o mata devido à inopinada e caridosa intervenção do diácono, mas o facto de Laévsky se ter entregado à morte com coragem acaba por ser o momento decisivo da sua ressurreição, a qual assenta no reconhecimento de si, na auto-reconciliação e na reconciliação com os valores socialmente aceites. Há uma estrutura dialéctica, quase à maneira de Hegel, neste processo. Ela manifesta-se no papel do negativo - o ódio, a traição e a morte - na ressurreição de Laévski, através do reconhecimento e da reconciliação. Manifesta-se ainda no processo de relativização de todos os pontos de vista em jogo. O próprio rigor moral kantiano - uma moral absoluta e incondicional - de von Koren é relativizado pelo reconhecimento que este faz do valor de Laévski e da reconciliação final entre ambos.  A moral burguesa que parece sair vitoriosa é, por seu turno, relativizada pelo sublinhar do ar lastimável, apesar de reconciliado com o seu destino, que agora Laévski apresenta. 

O duelo é a metáfora da dialéctica existencial, onde nenhuma das posições é verdadeira, fazendo todas elas parte de uma verdade que se desvela, para o leitor e não para as personagens, na articulação e no confronto entre as partes. A vida autêntica não era a do primeiro Laévski, nem a do Laévski reconciliado com o destino, nem a do zoólogo. As vidas privadas são vidas privadas de verdade, a sua autenticidade é a de serem inautênticas. "Ninguém conhece a verdade verdadeira", pensava Laévski. De facto, esta não reside em ninguém mas na vida tumultuosa que, como o turbilhão infinito de átomos que se entrechocam ao acaso, segundo os antigos atomistas, lança uns contra os outros, ora em confronto ora em apaziguamento. A polifonia narrativa foi a estratégia estilística encontrada por Tchékhov para figurar e configurar esta vida exuberante e a sua dialéctica existencial. Melhor, a polifonia narrativa foi a estratégia usada por Tchékov para transformar o caos das paixões humanas numa figuração que pode ser lida como dialéctica.

domingo, 20 de novembro de 2016

Knut Hamsun, Os Frutos da Terra


O sucesso internacional de Os Frutos da Terra (Markens Grøde, no original norueguês), publicado em1917, é apontado como uma das causas decisivas para a atribuição a Knut Hamsum do Prémio Nobel da Literatura, em 1920. O romance é, na verdade, uma espécie de epopeia centrada na glorificação da vida na terra e do valor da persistência do indivíduo perante os problemas que a natureza e a sociedade lhe colocam. No centro da narrativa está um herói inesperado, o colonizador de terras pantanosas da Noruega, Isak de Sellanraa. Esta epopeia, apesar da poeticidade inerente ao apelo da Terra e ao carácter ferozmente individualista do herói, inscreve-se claramente no combate que Knut Hamsun – ele que foi um dos grandes modernistas na literatura – trava contra a modernidade, em nome de uma relação mais profunda do homem com a natureza.

Apesar da importância no desenrolar da intriga  de figuras femininas como Inger, a mulher de Isak, Oline, parente de Inger e personagem perigosa pelo seu oportunismo e tendência para a coscuvilhice, e de alguns vizinhos, a obra funda o seu sentido em quatro protagonistas masculinos. O herói Isak, os seus filhos varões Eleseus e Sivert e o meirinho da aldeia próxima da quinta de Isak, Geissler, o qual foi destituído do seu posto ainda numa fase inicial da narrativa. Isak representa o ideal do homem em contacto com a natureza. Duro, persistente, trabalhador, mas marcado pelo grande amor à terra e à família. É a personificação do ideal do homem do campo, aquele que está em contacto com o que há de mais essencial na vida. Um individualista que, apesar desse individualismo, se liga à grande tradição dos homens que transformam, pelo trabalho, a terra num jardim. Tudo nele o afasta da modernidade, enquanto projecto ideológico contaminado pelo liberalismo económico e pela visão burocrática e desencantada do mundo. Curiosamente, Isak o inconsciente herói anti-moderno não desdenha as conquistas tecnológicas trazidas pela modernidade.

O meirinho Geissler é a personagem mais misteriosa do romance. Ele próprio se designa como sendo nevoeiro. Vê o que é certo, mas não tem o poder para o realizar, segundo afirma. Tudo nele é nebuloso. É nebulosa a história que o leva a perder o lugar de meirinho, como é nebulosa a sua vida posterior e os poderes que possui, entre eles a sua capacidade económica e a de influenciar a justiça. Desde o início que se constituiu como uma espécie de anjo protector de Isak de Sellanraa e da sua família. Ajuda Isak a adquirir os terrenos da sua quinta ao Estado, ajuda Inger, devido a um caso de infanticídio, perante a justiça, proporciona alguns negócios lucrativos à família. Tudo isto em troca de nada. No último capítulo, Geissler pergunta a Sivert quantas quintas há naquela zona. Este responde que são dez. Geissler diz então: Dez propriedades? Bem estou satisfeito. O país precisa de 32 mil homens como o teu pai, digo-te eu, que o calculei. Geissler é o anjo da ideologia, uma espécie de deus ex machina que resolve certos problemas e dá uma orientação e um sentido: Escuta, Sivert: alegra-te! Têm (os de Sellenraa) tudo porque viver, tudo com que viver, tudo em que acreditar, nascem e dão à luz, e são essenciais à terra. Nem todos o são, mas vocês sim: essenciais à terra. Sustentam a vida. Persistem de geração em geração e sentem-se completos ao simplesmente procriar; quando morrem, os filhos tomam o vosso lugar. É este o significado da vida eterna.

Sivert é importante na narrativa não apenas porque escutou a anunciação do anjo da ideologia, mas porque é o continuador da saga iniciada por Isak. Sivert é o segundo filho varão mas será ele que tomará em mãos a tradição sagrada do homem da terra. Não é a sua acção no tempo da narrativa que lhe dá importância, mas o facto de ele assegurar que a epopeia terá seguimento e que a terra continuará a ser trabalhada por gente vista como essencial. Eleseus é o elemento contrastante da família. Esteve, ainda jovem, num grande centro, onde adquiriu hábitos adversos à vida na terra. É a presença do mundo moderno no seio da família de Sellenraa. Um burocrata pouco vigoroso, talvez pouco masculino, demasiado preocupado com a aparência e incapaz para o confronto com a natureza. Mais do que os empresários e engenheiros ligados a uma mina de cobre adjacente à quinta de Isak, Eleseus é o representante do mundo moderno e liberal. Inquieto, consegue com a ajuda fraternal de Sivert algum dinheiro e parte, com promessa de voltar, para a América, o lugar do mundo moderno por excelência. Nunca voltou.

O que significa o facto de Eleseus nunca ter voltado? Significa que dali, onde a modernidade se instala, não há retorno possível a um lugar onde a vida seja autêntica. A América não é meramente um país, mas o território da modernidade liberal, o lugar daqueles que vivem rapidamente – que são relâmpagos, como assinala Geissler – e que confundem os meios com os fins. O lugar da confusão. Não se fica a saber nada do destino de Eleseus, apenas que não voltou. Este silêncio, na economia da narrativa e da ideologia do autor, não é inocente. Seja o que for o que lhe tenha acontecido, o fracasso ou o triunfo, isso é irrelevante, porque a vida no mundo moderno é destituída de significação autêntica. A autenticidade reside no solo pátrio, na luta individual do herói com a natureza, até domesticar esta. Este silêncio é revelador de uma opção ideológica do narrador e do próprio autor. Por muito que simpatizemos com Isak e Sivert, por muito atraente que seja a epopeia narrada, por genial que seja a técnica de Hamsun – o uso da corrente de consciência e do monólogo interior, por exemplo –, o livro não deixa de ser inquietante e ajuda a perceber muito bem a atracção do autor pelo nazismo germânico, onde encontramos muito desta ideologia. Seja como for, uma grande obra a ler com toda a atenção.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Lev Tolstói, A Morte de Ivan Illitch


Podemos ler um livro de múltiplas maneiras. Uma delas é mobilizar aquilo que se sabe da psicologia e dos traços ideológicos do autor para dar um sentido à leitura, para legitimar essa leitura, dando-lhe uma certa tonalidade verídica. Entre os múltiplos pecados que cobrem a minha alma está o de nunca me interessar pela biografia dos autores. Quando leio as suas obras leio apenas as suas obras e não quero saber da sua vida. Sou um leitor egoísta, pois procuro numa obra aquilo que ela me faz pensar e não a projecção mimética de quem a escreveu, até porque não acredito que a arte seja projecção mimética seja do que e de quem for. Eu não quero encontrar o autor, quero descobrir-me a mim através da provocação que uma obra me lança. Descobrir-me significa não tanto construir a minha pretensa identidade – coisa que duvido que tenha – mas destruir as construções ilusórios que faço dela.

Vladimir Nabukov, alguém com uma autoridade literária infinitamente maior que a minha, diz que a A Morte de Ivan Illitch trata "não da Morte de Ivan mas da Vida de Ivan." E este dizer está escorado naquilo que Nabukov sabe ser o pensamento de Tolstói, a preocupação deste com o destino do homem espiritual. Diz Nabukov:  «De acordo com  Tolstói , o homem mortal, o homem pessoal, o homem individual, o homem físico, vai pelo seu caminho físico para o caixote do lixo da natureza; de acordo com Tolstói, o homem espiritual regressa à região sem nuvens do amor divino universal, um lugar de felicidade neutra tão caro aos místicos orientais.» Será assim, mas nada disso me ajuda a compreender a novela em causa.

Qual o papel da morte em A Morte de Ivan Illitch? Obviamente que a morte, através da sua delegada a doença, tem a função de ir destruindo o corpo físico de Ivan Illitch. A minha leitura, porém, situa-se numa outra perspectiva. A morte tem, na novela, a dupla função de separação e de individuação. Quando ela surge no horizonte da existência de Ivan Illitch gera um processo de separação com a realidade habitual, com a vida familiar, as relações de amizade e os compromissos de trabalho. Esta separação que, num processo relativamente longo e marcado pela agonia final, a morte opera não significa uma etapa de indiferenciação e de dissolução dos limites do indivíduo.

Pelo contrário, Tolstói, ao separar da vida habitual a morte (deveria escrever a Morte), vai constituir Ivan Illitch num indivíduo. A morte é aquilo a que os filósofos medievais – não se referindo a ela – chamam princípio de individuação. O que se assiste, a partir do momento em que Ivan Illitch suspeita que está condenado, é à operação da sua verdadeira singularização. O texto é muito curioso a este respeito. Narra como Ivan Illitch, transferido para S. Petersburgo, está entusiasmado com a decoração que ele próprio faz da sua casa, como ele a acha singular. Mas esta percepção da personagem não é corroborada pelo narrador, que evidencia que aquele tipo de decoração é idêntico ao de todas as casas das pessoas da mesma classe social. Na verdade, Ivan Illitch é como todos os Procuradores, é mais um na massa do estrato social a que pertence, com gostos e idiossincrasias idênticos.

São o sofrimento físico provocado pela dor e o sofrimento moral motivado pela impotência perante a morte que o confrontam com a sua singularidade e o mostram não como um mero elemento da espécie ou da casta social mas como ser singular e irrepetível. O texto narra longamente como a morte se vai insinuando no horizonte da existência de Ivan Illitch e como ela o leva a questionar a própria vida que, com tanto êxito, tinha levado até ali. Este questionamento das antigas assunções, as quais estavam de acordo com aquilo que era socialmente correcto, faz parte de processo de singularização e de individuação da personagem, o qual não teria sido possível sem o papel operador da morte.

O que o texto revela – a mim leitor que não quer saber do pensamento do autor – é o papel da morte como operador da nossa individualidade. A vida é um puro magma indiferenciado. É a morte que, ao operar sobre ela, ao trabalhá-la, ao exercer o seu papel de negação, vai extraindo desse magma indiferenciado um indivíduo, um ser singular e irrepetível. Não me torno indivíduo pela forma como vivo a vida, mas pela forma como a morte opera sobre mim, questionando-me, limitando-me e separando-me dessa pura indiferenciação a que chamamos vida.