domingo, 30 de outubro de 2016

Witold Gombrowicz, Pornografia


Um dos comentários mais correntes sobre o romance de Gombrowicz refere a inexistência de cenas pornográficas em toda a obra. “No sexual reality. Everything remains in acondition of sexual potential. It is exactly this that Gombrowicz calls pornography.” Esta leitura coloca, numa perspectiva muito aristotélica, a tensão romanesca entre o sexo em acto e o sexo em potência, dado por um clima erótico que nunca se concretiza. A pornografia seria, segundo esta perspectiva, esse estado potencial da sexualidade que não se realiza, que suspende a sua consumação e evita tornar-se efectiva. Uma leitura legítima. No entanto, vale a pena pensar mais demoradamente sobre o vocábulo que dá título ao romance.

Pornografia significa “representação de elementos de cariz sexual explícito, sobre tudo quando considerados obscenos…” (dicionário Porto Editora). Se se descer à etimologia da palavra encontramos porno- (do grego porné, prostituta) “elemento de formação de palavras que traduz a ideia de prostituição” (dicionário Porto Editora) e grafia que nos envia para a escrita, para a representação de algo através da escrita. Isto significa a existência de, pelo menos, duas camadas de sentido. 

O nível mais superficial do vocábulo remete para representação obscena, que fere a decência e o pudor, de uma sexualidade explícita. O nível mais fundamental vê a pornografia como uma representação do comércio sexual, da venda de favores sexuais. Estamos no domínio da troca, mas de uma troca específica. Toda a relação sexual está fundada na troca, mas numa troca que pressupõe uma certa reciprocidade nas coisas trocadas (prazer, afecto, amor, etc.). O que prostitui a relação sexual é a introdução de um elemento estranho à reciprocidade. Pode ser o dinheiro, mas também qualquer outro bem. Assim aquilo que a origem etimológica da palavra sublinha como pornográfico não é a prostituição, mas a representação dela, a sua grafia, o escrever sobre ela. Pornográfico é escrever ou representar trocas sexuais ou de prazer, mesmo que potenciais, assimétricas e sem reciprocidade.

O romance de Gombrowicz é pornográfico neste sentido último. É-o de duas maneiras. A primeira do ponto de vista da narrativa propriamente dita. A segunda, a partir da consideração sobre a natureza das obras de arte em geral. De forma bastante sub-reptícia, o romancista deixa transparecer, na história que narra, uma consideração sobre a própria arte enquanto atitude pornográfica, não precisando de dizer uma única palavra sobre o assunto. Limita-se a escrever o seu romance.

A história passa-se numa propriedade rural, na Polónia, aquando da ocupação alemã. Para lá dirigiram-se, vindos de Varsóvia, dois amigos de meia idade, um escritor e um encenador. Não se pense contudo que esse horizonte político tem um relevo decisivo na construção da narrativa. Na verdade, os parcos acontecimentos que têm a ver com a luta política – a perda de coragem de um dos chefes da resistência e a necessidade de ser executado – são mobilizados pela encenação e pela configuração da intriga pelos dois amigos, mas com fins ligados aos seus desígnios pornográficos. O que está em jogo é a tensão erótica entre os dois homens de meia idade e um par – Henia e Carol – de jovens de 16 anos. Estes nada têm a ver, do ponto de vista amoroso, um com outro. Henia está noiva de um advogado, Waclaw, e ambos sentem-se quase como irmãos. Mas Witold e Fryderyk, os dois amigos, descobrem, cada um por seu lado e através de indícios que eles próprios imaginam, que os jovens são feitos um para o outro. O hipotético amor entre ambos é uma criação literária de Witold (o nome próprio de Gombrowicz) e uma encenação de Fryderyk, o encenador. O que está em jogo, pelo menos numa primeira abordagem, é o modo como a arte – a do escritor e a do encenador – pegam nos elementos que a vida fornece e configura uma nova realidade de acordo com os desejos do artista.

O jogo de Witold e de Fryderyk está longe de ser inocente. Excluídos, pela idade, do prazer que a beleza juvenil fornece, encontram na sua “produção” o gozo erótico que a realidade lhes nega. Todas as manobras – na verdade, verdadeiros exercícios artísticos – que visam a aproximação amorosa de Henia e de Karol são representações de um erotismo que lhes foge. Como se percebe, há uma assimetria instalada entre os fruidores e os objectos da fruição. Os vários acontecimentos em que o candidato a marido de Henia se vê confrontado com a traição desta são verdadeiras encenações, exercícios de pura representação. E são de tal maneira representações cenográficas que Waclaw sente a completa artificialidade das cenas, a sua falsidade, e ao mesmo tempo pressente a traição de Henia, não no facto de haver uma relação sexual entre ela e Karol, mas no jogo representacional a que se entregam, como se os jogos – em aparência insólitos – transportassem uma carga erótica desmesurada, que a idade dos participantes não poderia alguma vez sustentar. A traição não está no acto, nem na sua possibilidade, mas na representação artificiosa desse mesmo acto.

Em nenhum momento do romance, Gombrowicz descreve uma cena sexual. A pornografia não está nos actos. Tão pouco está no clima potencial que, a cada momento, pode dar lugar ao exercício da sexualidade. Pornográfico é o jogo de representações que os amigos, através de uma subtil manipulação dos acontecimentos, produzem, explorando a assimetria entre os gozadores e os objectos do gozo. Não há qualquer reciprocidade entre Witold e Frederyk e Henia e Karol. A pornografia está toda na extracção de prazer através de uma representação a priori desse prazer e da manipulação da realidade de forma a que ela coincida com essa representação. Na manipulação dos acontecimentos por parte dos dois amigos encontra-se a assimetria que há entre o cliente e a pessoa prostituída. Assim como pornografia significa literalmente a escrita, a grafia, de uma assimetria na troca de prazeres eróticos, o que o romance encena é uma representação de uma assimetria entre os dois homens de meia idade e os jovens objectos de desejo, representação essa que se funda na invenção (mais uma representação) de um desejo, o dos jovens um pelo outro, que não existia. Estamos sempre no domínio das grafias, isto é, das representações e das ficcionalizações. Na verdade, existe aqui uma revelação. Não há prazer que não seja ficção e encenação, pura fabricação. 

Por outro lado, Pornografia pode ser lido como uma alegoria sobre a própria arte. Entre o artista e o consumidor de arte (o leitor de romances, o espectador de uma peça teatral, para nos fixarmos em dois exemplos da própria obra, os quais são extensíveis a todas as áreas artísticas) existe uma relação assimétrica. A pornografia nasce do facto do artista estar consciente dessa assimetria, de a representar e de querer que a realidade corresponda a essa assimetria. Uma troca não assimétrica residiria no facto de a cada narrativa recebida o leitor construir a sua narrativa e oferecê-la ao escritor, a cada encenação assistida o espectador em vez de pagar o bilhete produzir a sua própria encenação. Ora o mundo artístico implica a diferenciação e a assimetria. Implica que uns sejam activos, produtores de obras de arte, e outros receptores passivos. Sem esta assimetria a arte não poderia existir. Pornográfico, no entanto, não é a mera assimetria, a falta de reciprocidade entre autor e receptor, mas a representação que o artista faz dessa situação e o prazer que daí retira. Pornografia é a consciência de que se proporciona um dado prazer através de uma fabricação – a obra e arte – que requer e mantém a diferença absoluta entre o criador e aqueles que recebem – ou pagam – os artefactos criados.


Witold Gombrowicz (2012). Pornografia. Alfragide: D. Quixote. Tradução do polaco por Teresa Fernandes Swiatkiewicz

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Thomas Mann, Os Buddenbrook


O romance permite, muitas vezes, associar o prazer estético da obra com uma certa aprendizagem sobre a dimensão social da vida humana. Não que o romance vise apreender e explicar o social, mas, ao tomá-lo como matéria romanesca, permite que o leitor compreenda certas realidades de uma forma mais viva que aquela que lhe é dada pelo estudo de um documento académico. Os Buddenbrook permite intuir a natureza da tradição burguesa da Europa central e do norte, de cariz protestante. O ethos burguês, uma coisa tão estranha à tradição peninsular, está ali desocultado na sua plenitude. O cálculo entre prudência e risco, a importância da empresa no seio da cidade, a piedade protestante são a matéria sobre a qual se constrói a intriga nuclear da acção romanesca. Para um europeu do Sul, tudo aquilo não deixa de ter um ar estranho e, fundamentalmente, ajuda-o a perceber a profunda reticência com que a Alemanha da senhora Merkel olha para nós. Mas, o mais curioso, aquilo que hoje se ouve acerca dos europeus meridionais era a voz corrente nos alemães do norte acerca dos bávaros, seus irmãos do sul da Alemanha, como Thomas Mann não deixa de retratar em Os Buddenbrook. É como se houvesse, impregnada na mente da espécie humana, uma espécie de racismo geográfico, onde o Sul surge sempre como inferior ao Norte.

No apogeu do sucesso empresarial, político e pessoal, Thomas Buddenbrook sente um deslassar interior como se os acontecimentos, que até aí dominara, começassem a fugir ao seu controlo. Não era nada de visível, apenas uma sensação interior. Os gregos diriam que a Tyche (a deusa Fortuna para os romanos) o abandonara. No entanto, pelo menos no período helenístico, a deusa tomou uma coloração de pura arbitrariedade, como se ela concedesse os seus favores e desfavores ao acaso. Thomas Buddenbrook, porém, associa essa perda de domínio sobre o mundo, essa incapacidade de submeter a realidade aos seus projectos, não ao abandono da deusa mas a um excesso seu. A sua nova casa, a troca da rica casa, onde se instalara ao casar, por outra maior e mais esplendorosa. Este excesso, esta ultrapassagem da justa medida, é aquilo a que os gregos do período clássico chamavam hybris. Embora Thomas Mann não fale, no romance, em Tyche e hybris, é isso que está em jogo. Thomas Buddenbrook sente o delíquio interior como uma punição do seu excesso. Aqui, de forma talvez surpreendente, percebe-se a conexão entre o mundo burguês do século XIX e os gregos da antiguidade clássica. A ordem dos negócios, para os burgueses modernos, ou a ordem pessoal e cívica, para os antigos gregos, estão ligadas à sophrosyne, à prudência fundada no auto-conhecimento, o qual nos diz que limites não devemos ultrapassar.

Havia, na época clássica dos gregos, a esperança de que uma conduta sensata evitasse os desvarios da fortuna. Na tragédia, por exemplo, a vinda da má fortuna está sempre ligada a um excesso, embora este não esteja na mão do herói evitar. De certa maneira, Thomas Buddenbrook também não pode evitar a nova casa que a situação social lhe impõe. Deste ponto de vista, Os Buddenbrook escondem sob o modelo romanesco uma intencionalidade trágica. Mas aquilo que talvez seja mais interessante pensar resida nos nossos dias. Se na época a que corresponde o romance, segundo e terceiro quartéis do século XIX, ainda é possível fazer uma conexão entre a perda da fortuna com a hybris, hoje em dia, onde tudo foi reduzido ao puro jogo (o jogo dos mercados, por exemplo), a fortuna, a deusa Tyche, está desligada do comportamento, seja ele sensato ou excessivo. É o tempo dos aventureiros. Como no período helenístico, a Tyche tornou-se arbitrária e cega. Ora o período helenístico marca o começo do fim do esplendor dos gregos, o início da sua derrocada. Que o início da nossa comece na Grécia, só espantará quem ache que a história começou com a eleição da senhora Merkel.

Os Buddenbrook são um reflexão sobre a estultícia das linhagens. Em quatro gerações, uma família de comerciantes ergue-se, atinge o apogeu, declina e desaparece sem deixar rasto. O último da estirpe morre de tifo aos quinze anos. O tifo, porém, não era mais que o temor sentido por uma actividade que chocava a sua sensibilidade musical. Isto não significa que dentro das famílias não haja, por vezes, uma inclinação para a repetição de certas funções sociais. Significa apenas que isso se deve à pressão do meio, às vantagens que essa família foi conseguindo acumular, ou às desvantagens que uma outra não soube ou não pôde evitar. Linhagens são exercícios da imaginação, devaneios sobre uma continuidade de aptidões que não existe, uma tentativa desesperada de controlar o futuro e o medo que se abate sobre cada família pela entrada de um novo membro. O princípio monárquico, a enfatização das genealogias, a afirmação da estirpe são ritos de exorcismo perante o insondável mistério que cada ser humano representa. O jovem e delicado Johann Buddenbrook preferiu o mistério da morte à segurança da genealogia. Um verdadeiro republicano.

domingo, 2 de outubro de 2016

Carson McCullers, A Balada do Café Triste


As metamorfoses do Self (Si-mesmo), talvez toda a literatura não trate de outra questão, talvez a única coisa que esteja em jogo nas narrativas seja a tentativa de capturar uma identidade. Foi Milan Kundera, salvo erro, que fez o curto-circuito que mostrou, no âmbito da cultura europeia, a existência de dois projectos, praticamente contemporâneos, de processamento da identidade. Por um lado, aquele que se estriba no cogito cartesiano, onde a subjectividade se mostra como fundamento de todo o conhecimento, mas uma subjectividade puramente racional, de carácter pontual e vazia. O sujeito cartesiano, na ânsia da evidência racional, despe-se de toda a biografia e resume-se a uma razão pura. Por outro, o D. Quixote, de Miguel de Cervantes, onde o Self (no caso, o de D. Quixote) se entrega a todos os desvarios e equívocos, mas são estes que permitem preencher uma identidade, uma identidade que se transforma ao longo da narrativa.

A Balada do Café Triste, da escritora norte-americana Carson McCullers (1917-1967), é mais um episódio, como o de qualquer narrativa literária do Ocidente moderno, dessa longa tradição escorada, em última análise e apesar das múltiplas formas que tem tomado, no Quixote. A narrativa pode resumir-se como uma investigação sobre o modo como o amor e a traição desencadeiam as metamorfoses do Self da personagem principal do texto, Miss Amelia Evans. Metamorfoses estas que são acompanhadas e observadas pelos habitantes da pequena povoação do Sul dos EUA, onde decorre a acção. A população funciona praticamente como o coro da tragédia grega, pautando a acção e comentando o desenrolar dos acontecimentos.

O carácter solitário, rude, avarento e belicoso de Miss Amelia, a mulher mais rica da zona, é subitamente adoçado pela chegada de um nebuloso primo - parentesco nunca verdadeiramente confirmado -, o primo Lymon, um corcunda frágil, pequeno e insinuante, de espírito empreendedor. Para espanto da população, Miss Amelia não só não contestou as pretensões de parentesco de Lymon, como o recebeu em sua casa. A partir desse momento, a sua disposição de espírito torna-se mais suave e alegre, como se a chegada daquele corcunda tivesse o efeito de revelar a Miss Amelia uma parte de si que até aí todos desconheciam, inclusive ela própria. O resultado dessa metamorfose, provocada pelo amor, é a abertura do Café, um estabelecimento animado pela presença de Lymon e onde a população encontrou, ao contrário do que diz o título do conto, um lugar de alegria na desolação que era a vida de todos.

A súbita e inesperada chegada do rufia Marvin Macy, antigo marido de Miss Amelia, que ela suportou apenas por dez dias, veio alterar a situação que parecia estabelizada há vários anos já. Tendo estado preso durante muito tempo numa penitenciária de Atalanta, mal chegou exerceu sobre o primo Lymon um nefasto fascínio. Esse fascínio conduziu, primeiramente, a um equívoco triângulo amoroso, onde Miss Amelia e Marvin Macy disputam a atenção, ou o amor, do corcunda. Por fim, ambos se confrontam numa luta de boxe, no café, assistida pela povoação em peso. A vitória de Marvin Macy só se tornou possível pela intervenção do corcunda. A humilhação de Miss Amelia fica completa pelo desaparecimento do ex-marido acompanhado pelo primo Lymon.

A traição de Lymon desencadeou uma derradeira metamorfose identitária em Miss Amelia, onde o antigo vigor e doçura desapareceram, como se a identidade se dissolvesse e se preparasse para se extinguir, para se tornar um resíduo pontual que lembra, como se fosse um negativo fotográfico, a identidade pontual e vazia da filosofia cartesiana, como se toda a biografia não fosse mais que o prelúdio da sua própria extinção, uma extinção lenta, triste e dolorosa, sob os olhos do coro trágico da população daquele nenhures do sul dos Estados Unidos.