segunda-feira, 22 de abril de 2024

Silvina Ocampo, A Promessa

 

A escritora argentina Silvina Ocampo (1903-1993) apenas escreveu um romance, A Promessa, que, aparentemente, deixou inacabado, tendo sido publicado postumamente. Começou a escrevê-lo em 1960, mas a certa altura a doença ter-se-á intrometido no projecto. A edição portuguesa, da responsabilidade da Antígona, data de 2023, com tradução de Helena Pitta. A obra é, em aparência, uma exploração da natureza fluida tanto da vida como da memória e é desencadeada por uma queda, essa situação mitológica que abre o horizonte onde se desenrola a vida e a morte. Trata-se de uma queda prosaica da narradora e protagonista, da qual não se sabe o nome e pouco da sua situação. No entanto, a essa queda corresponde uma salvação, da qual se suspeita a intermediária, mas não o modo. Quando se deslocava, num transatlântico, para a cidade do Cabo, para se reunir com a parte menos enfadonha da minha família, ao debruçar-se sobre a amurada do navio, caiu ao mar, sem que ninguém a visse. O livro é o resultado de uma promessa a Santa Rita, a das causas impossíveis: Não esqueci o pormenor desta atitude quando lhe fiz a promessa de, caso me salvasse, escrever este livro e de o terminar até ao dia do meu próximo aniversário.

O romance começa com o problema da narradora acerca da possibilidade de publicar o texto, interrogando-se sobre que editora o iria publicar. Isso só seria possível se acontecesse um milagre e ela acredita em milagres. Esta preocupação é o sinal de que o impossível tinha já acontecido. Apesar de ter caído ao mar sem que ninguém desse por isso, ela ali estava preocupada com a publicação e recorrendo mais uma vez aos serviços da Santa Rita. A inverosimilhança da situação narrada, a da salvação de alguém que cai em alto-mar sem que ninguém dê por isso, é contrabalançada com o recurso à intervenção milagrosa de uma santa que tem por missão advogar as causas perdidas. A promessa é o próprio livro, um livro muito especial, um dicionário de recordações às vezes vergonhosas, humilhantes. Não se pense, todavia, que se trata de uma confissão, pois a narradora não tem vida própria, apenas sentimentos: As minhas experiências não tiveram importância nem ao longo da vida nem sequer à beira da morte; a vida dos outros, pelo contrária, torna-se minha. Não é uma confissão, mas um relato de memórias de outros.

Perdida no oceano, vendo o navio a afastar-se, decide nadar e enquanto nada, para não se deixar atrair pelo canto de sereia da morte, deixa-se levar por um itinerário de recordações, uma modalidade de resistência ao sono, uma espécie de itinerário que, não sem ironia, também aconselho aos presos, aos doentes que não se conseguem mexer ou os desesperados à beira do suicídio. A memória é então uma modalidade de resistência à inacção e não há maior inacção do que a morte, morte que a cercava por todos os lados e que, segundo uma visão racional, seria mais do que certa. Existe uma confluência salvífica: a intercessão de Santa Rita e o continuado exercício da reminiscência. Essa memória, plasmando a nossa corrente de consciência, é feita de diversas narrativas, algumas mais complexas e com trama romanesca, outras como meros apontamentos, histórias incoadas, mas que não se desenvolvem. Assim, como nos repetimos, também a memória da nadadora à beira da morte se repete, mas ao repetir-se altera ligeiramente o que tinha contado. Um dicionário de recordações, com algumas entradas quase iguais a outras, mas que todas elas poderiam dar lugar a um exercício narrativo mais amplo e complexo, contos, novelas e romances, o que estaria, porém, em contradição com a situação presente daquela que se entrega a essas recordações.

A sucessão de recordações e a luta da protagonista pela vida, que se mistura na narrativa memorial, permitem pensar na relação entre duas instâncias temporais, o passado e o presente. O presente é vivido no fio da navalha, sempre sob a ameaça de haver um corte que impedirá que o futuro se torne presente. O que permite resistir à morte é a reminiscência do passado. O presente é sempre um buraco vazio e precisa de ser preenchido pelos produtos da memória ou da expectativa. Numa situação de morte iminente, a expectativa de um futuro parece impossível e o que pode alimentar e dá combustível à luta do presente é o material proveniente do fundo da memória. A questão, porém, é um pouco mais complexa, pois aquilo que está em jogo não é a aventura vivida no oceano, mas a aventura de escrever e publicar o livro prometido a Santa Rita. Sou analfabeta. Como conseguiria publicar este texto? Que editora o receberia? Creio que seria impossível, a menos que acontecesse um milagre. Acredito em milagres. O perigo não é morrer afogada, desse, de modo inexplicado, ter-se-á livrado, mas o de cumprir a promessa feita a santa Rita, isto é, escrever e publicar o livro.

O que se revela, então, na ficção de Silvina Ocampo é uma analogia entre lutar pela vida em alto-mar e o trabalho de escrever. A arte literária – toda a arte, porventura – é o resultado de uma queda do artista. A escrita é o exercício de natação que o mantém à tona de água e é alimentado pela memória, pelas histórias acumuladas que são um penhor de salvação. O romance é uma meditação sobre a arte romanesca, na qual todo o artista é, em última instância, um analfabeto que tem de recorrer, através de uma promessa, à intercessão de uma santa das causas impossíveis, para que a obra seja realizada e aceite. Toda a obra de arte é uma causa impossível que se tornou possível pelo milagre. Só se torna artista aquele que acredita em milagres, no milagre da sua própria arte que se consuma na obra realizada. Há, no romance de Ocampo, uma fenomenologia da arte literária marcada por três instâncias. A da queda no desejo de criar (em analogia com a queda da amurada do navio), a da promessa que marca o compromisso de escrever (o exercício de natação em alto-mar) e a do milagre da realização da obra (a salvação da morte iminente). São cem páginas de um inteligente jogo de analogias.


quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Julien Gracq, A Costa das Sirtes

 

Publicado em 1951, A Costa das Sirtes (Le Rivages des Syrtes) é o mais conhecido romance do francês Julien Gracq (pseudónimo literário de Louis Poirier). Foi traduzido para português por Pedro Tamen e publicado pela Vega. A primeira edição portuguesa, sem data, está esgotada, mas ainda será possível encontrar a reedição de 1988. O romance valeu ao autor o prémio Goncourt, aliás recusado. O romance escrito numa linguagem que o aproxima da prosa poética é resultado de uma trama onde o destino do indivíduo se entretece com o da comunidade a que pertence. Não estamos perante um herói burguês voltado para a acção triunfal, mas de um aristocrata que encarna o espírito de uma comunidade, cujo desejo inquietante se manifesta no coração de Aldo, o herói e narrador. Num mundo imaginário, dois países – Orsenna, a cidade-estado aristocrática a que pertence Aldo, e Farghestan, a potência bárbara e desconhecido, separados pelo mar das Sirtes – entretêm uma inimizade ancestral, estando em guerra há séculos, mas desde há trezentos anos que não há uma batalha. A guerra parece sempre o destino que espera Orsenna, mas um destino que não se consuma.

Deste destino que não se consuma nasce uma expectativa na própria comunidade. Há todo um comportamento ritual para evitar a deflagração de um conflito com o inimigo de sempre, com os bárbaros do outro lado do mar. A existência de um estado de guerra adormecido, mas continuamente presente, torna-se uma estranha inquietação. No segredo dos corações, há um desejo de afrontar e tornar presente esse destino sempre anunciado e sempre adiado. É neste ambiente que Aldo, cansado do tédio da sua existência na capital, pede para ser incorporado no serviço militar. É enviado como observador, um cargo de acordo com a sua posição social de aristocrata, para as Sirtes, para o Almirantado, onde estão as tropas de Orsenna que têm por missão vigiar o mar e evitar que alguém ultrapasse a linha imaginária que sustenta a paz reinante. A ultrapassagem dessa linha porá fim ao torpor da história. Tanto o edifício do Almirantado como a região vivem numa grande degradação, como se aquela região nos confins de Orsenna tivesse sido abandonada pelo centro, esquecida pelos poderes públicos. É nesse ambiente de desolação que Aldo sente uma atracção pelos mapas da região, o que inquieta o comando do forte, que vê nesse interesse uma ameaça ao status quo.

O tédio de Aldo condu-lo à necessidade de se aventurar para além da linha imaginária que pode conduzir à guerra. Contudo, não é apenas o seu estado de espírito que o move. O encontro com a jovem princesa Vanessa Aldobrandi, cuja família tem um palácio em Maremma, uma espécie de Veneza das Sirtes, uma Veneza degradada, tem um papel fundamental na conduta de Aldo. Ela é uma Eva que tenta aquele Adão, já de si desejoso de ser tentado. A família de Vanessa é vista como tendo, em tempos, estado conluiada com os inimigos de Orsenna, talvez seduzida pela natureza estranha do inimigo. Vanessa traz no sangue essa propensão para o que será uma traição. Também ela não suporta a expectativa, a paz que nunca é uma verdadeira paz alicerçada numa amizade entre ambos os países, mas uma ausência da guerra, que a qualquer momento poderá eclodir. A sedução de Aldo por Vanessa é um elemento central da narrativa de Gracq, embora não seja claro que sem essa sedução Aldo tivesse evitado a aventura que o lea à transgressão da linha imaginária.

É plausível pensar que aquilo que move os dois jovens é diferente. Vanessa age por fidelidade a uma tradição de traição, de aliança, ainda que meramente subjectiva, com o inimigo. Aldo encontra na aventura que desencadeará a guerra que destruirá Orsenna uma forma de dar sentido à sua existência, de o raptar do tédio de uma vida perdida entre prazeres e sem objectivos que não sejam estar vivo e manter a situação tal como está há séculos. A transgressão é uma forma de combater o tédio e dar um sentido à existência do jovem aristocrata. Contudo, a transgressão de Aldo ultrapassa-o, pois ela responde a um silencioso e inquietante desejo de transgressão dos habitantes de Orsenna. A transgressão resulta da incapacidade de viver continuamente numa tensão entre o que existe e aquilo que ameaça vir a existir, mas que adia constantemente a hora da sua manifestação. Na verdade, não é o tédio de Aldo que arrasta Orsenna para a guerra, mas o desejo secreto de guerra existente no coração de Orsenna que se manifesta no tédio e na transgressão de Aldo. Há um desejo de suicídio colectivo. Já ninguém suporta a expectativa, pois o desejo de enfrentar aquilo que está destinado a acontecer tomou conta dos espíritos. O acontecimento apocalíptico que se deseja secretamente é a outra face da revelação do próprio destino da comunidade e dos indivíduos que a compõem.

Julien Gracq refere que o seu objectivo em A Costa das Sirtes não foi contar uma história intemporal, mas destilar aquilo a que chama o “espírito da história”. A estratégia usada para esse destilar do “espírito da história” vive numa tensão tempo e intemporalidade. A linguagem descritiva da paisagem das Sirtes, acentuadamente poética, dá a ver um mundo marcado pelo tempo, um mundo onde as ruínas parecem omnipresentes, mas fá-lo de uma forma tal que esse mundo parece ter sido elevado à condição da imutabilidade. A imutabilidade, a ausência de mudança, é um sintoma da intemporalidade. É nessa aparente intemporalidade que se manifesta o “espírito da história”. A história, sublinha-o Gracq, possui um feitiço oculto, o qual possui a virtude, isto é, o poder de intoxicar. É esta intoxicação que toca os habitantes de Orsenna e anima Aldo na luta contra o tédio. É ela que precipita o inevitável e põe o motor da história a trabalhar. E sempre que se ouve o motor da história rodopiar há uma consumação do destino. Por norma, essa consumação é um desastre, o desastre que de alguma forma se esperava e, no fundo, se desejava.

O romance, publicado como se referiu em 1951, pode ser uma densa meditação a posteriori sobre o destino de uma Europa marcada por duas grandes guerras, É provável que, na época em que surgiu nas livrarias, assim fosse lido. O mais curioso, todavia, é que a sua leitura nesta hora revela uma outra faceta da obra. O que capta o espírito do leitor não é tanto a meditação sobre o passado da Europa, mas o retrato do tempo presente, como se nós, os europeus, fôssemos os habitantes de Orsenna e perante nós se erguesse a imagem de um destino que se teme e ao mesmo tempo se deseja. Também nós temos o nosso Farghestan, com o qual estamos em guerra, apesar da paz aparente em que vivemos. Esperamos apenas o Aldo que encarne o nosso desejo de destino e precipite aquilo que, no fundo, todos sentem como inevitável. A Costa das Sirtes, apesar de escrita há quase 75 anos, parece-nos dirigida. Resta saber se o romance de Gracq nos é dirigido como um aviso ou como uma profecia.

sábado, 30 de dezembro de 2023

Max Frisch, Não Sou Stiller

 

Publicado originalmente em 1954, o romance Não Sou Stiller, do escritor suíço Max Frisch, foi traduzido, em 1958, por Fernanda Botelho, para a Editora Arcádia. É o terceiro romance do autor, também dramaturgo e arquitecto, e o primeiro de três obras romanescas em torno da temática moderna da identidade. O segundo, de 1957, é Os Homens Não São Máquinas, uma tradução do título excessivamente interpretativa para o original alemão, Homo Faber. Ein Bericht. O terceiro é Chamem-me Gantenbein, de 1964. Também publicados em Portugal pela Editora Arcádia. Não Sou Stiller combina duas temáticas. A da identidade e a da conjugalidade, o ser-se si mesmo e o ser-se com e para o outro. Um aspecto interessante, embora lateral, é o facto de Max Frisch ser, enquanto dramaturgo, um brechtiano, mas o romance não possuir qualquer intencionalidade política, aliás, em contracorrente com a literatura mais influente da época.

Por estranhos que possam parecer, um ao outro, o romance moderno e a filosofia cartesiana, por diferentes que sejam os jogos de linguagem a que cada um pertence, com as suas finalidades e regras claramente diferenciadas, só muito dificilmente se pode imaginar que esse romance nascido na Europa moderna, com a publicação de Dom Quixote, se pode desligar da posterior odisseia do cogito cartesiano. A afirmação da subjectividade como fundamento do conhecimento teve um preço que Descartes tratou narrativamente. Esse preço foi a sua redução a um eu pontual em risco  de cair no solipsismo e marcado pela descoincidência consigo mesmo, aquilo a que se chama vulgarmente o dualismo ontológico entre a mente (alma) e o corpo. O que Descartes tematiza é essa descoincidência de si consigo mesmo, de um self que mesmo na evidência precisa da certificação dada por Deus, um Deus ex machina, para enfrentar a ameaça de a própria mente descoincidir consigo mesma. O ponto de partida do romance é a afirmação peremptória, feita por Stiller: Não sou Stiller… O romance começa com a afirmação de uma descoincidência consigo mesmo.

A obra divide-se em duas partes. Na primeira, são reproduzidos os sete cadernos de anotações escritos por Stiller na prisão. A segunda, substancialmente mais curta, é designada como “Epílogo do Procurador”. Existem, deste modo, dois narradores. A história começa quando, num avião, um passageiro, com passaporte americano, de nome James Larkin White é tomado por Anatol Ludwig Stiller, um escultor suíço relativamente famoso, desaparecido há seis anos sem deixar endereço. Ninguém sabe para onde foi. Nem a mulher, nem o irmão, nem os amigos, nem os clientes. A polícia suíça interessa-se por ele devido ao desaparecimento coincidir com um caso de espionagem a favor da União Soviética. Quer tirar a limpo se Stiller estava ou não relacionado com o caso. Daí a prisão preventiva de White, a panóplia de técnicas de identificação e a enorme pressão que tanto o advogado de defesa como o promotor de justiça fazem para que ele confesse a sua identidade. Embora a exigência de confissão se inscreva num processo de âmbito judicial, ela emerge como uma possibilidade da restauração da coincidência consigo mesmo. A confissão tem, na verdade, uma dimensão ontológica.

O romance não apresenta qualquer causa para essa descoincidência do protagonista consigo mesmo, mas manifesta três sintomas que a tornam evidente. Stiller oferecera-se para combater na guerra civil espanhola, nas Brigadas Internacionais. Numa missão que lhe fora confiada, a de vigiar um barco no Tejo e evitar que fosse usado pelos franquistas, foi incapaz de disparar sobre eles. Não havia nele qualquer chama revolucionária ou de combatente. Também o seu casamento com a bailarina Julika Stiller-Tschudy é uma prova dessa descoincidência. Aquilo que ela era não coincidia com aquilo que ele esperava, nem o amor que ele lhe dava coincidia com o amor que julgava ter de lhe dar. Também a sua escultura estava longe de se acordar com aquilo que ele entendia que deveria ser a arte. Nestes sintomas manifesta-se sempre uma distância entre a realidade de si mesmo e a expectativa que se tem de si na vida, seja esta a guerra, o amor ou a arte. Não é qualquer envolvimento em casos de espionagem que levam Stiller a desaparecer, mas a impossibilidade de suportar a distância entre as suas expectativas e a sua realidade. O que o conduz à fuga é a impotência para se aceitar tal como é. Na verdade, é um acto de rebelião contra a ordem, seja esta a ordem divina ou a ordem da natureza.

Nos sete cadernos de notas de prisão de Stiller, descobrimos uma teia de relações amorosas anteriores à fuga. A sua relação com a mulher, Julika, a relação daquele que é agora o procurador no caso contra Stiller, Rolf, e da sua mulher, Sybille, e o caso entre Stiller e Sybille, ambos já casados. Há, no romance, um óbvio questionamento do papel da fidelidade no casamento. O adultério não é visto como merecedor de apedrejamento, como Cristo já não o vira, segundo a narrativa evangélica, nem tão pouco de censura moral, o que terá parecido, na época, muito ousado. Sobrepõe-se o valor moral da liberdade individual ao da propriedade. Contudo, o problema da fidelidade é secundário no âmbito do tratamento da conjugalidade. Aquilo que o autor interroga é a possibilidade de dois eus se conjugarem numa vida comum e dotada de sentido. Se se olhar o casal Rolf e Sybille, o convencionalismo burguês, integrando a infidelidade na natureza das coisas, é solda suficiente para seres cujo questionamento existencial é de baixa intensidade. O caso paradigmático é o do casamento entre Stiller e Julika, onde ambos parecem sofrer de um efectivo problema de identidade e, de formas diferenciadas, estão sob forte questionamento existencial pelas respectivas consciências. O que fica claro é que o casamento está longe de ser a solda ideal para que cada um se una consigo mesmo e encontre a sua identidade. Não passa de um longo equívoco, em que os cônjuges não se conjugam entre si, pois não estão conjugados entre o que são e o que imaginam ou desejam ser.

O século XVII continua a assombrar-nos. É o século de Descartes, mas também de D. Quixote, de Cervantes, o primeiro romance moderno, ainda anterior à aventura do cogito. A afirmação da individualidade a partir do Renascimento conduz à descoincidência cartesiana e à de D. Quixote, cindido entre a idealidade imaginária e a dura realidade. Stiller, na sua negação e procura de si, é um herói romanesco que vive entre a necessidade cartesiana de uma garantia e o irrisório quixotesco da sua existência real. Rolf, de cuja mulher Stiller fora amante, tornou-se, durante o processo, seu amigo. Tentou comunicar-lhe que essa garantia da soldadura de si residia em Deus, mas Stiller ficou sempre subjugado à dimensão quixotesca da existência. Ora, essa dimensão quixotesca não é outra coisa senão uma fuga. Não da vida, mas daquilo que se é. A identidade torna-se problemática nesse momento em que aquilo que se é se mostra aos próprios olhos como insuportável. Talvez a questão da identidade não passe, de um ponto de vista filosófico, de um longo equívoco, mas enquanto a sua sombra se projectar sobre os homens, o romance não poderá, na realidade, ter outro tema.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Natália Correia, A Madona

 

Publicado em 1968, A Madona é um romance da escritora açoriana Natália Correia. O tempo da narrativa apresenta-se cindido, dependendo dos espaços da acção, ora uma aldeia arcaica de Portugal, Briandos, onde o tempo pertencia, na verdade, a uma era já desaparecida da Europa, ora Paris, e também Londres, o apogeu da contemporaneidade. A obra é cruzada por diversas tensões que lhe conferem densidade e permitem diversas dialécticas que compõem a sua complexa dimensão semântica. A primeira tensão é entre o arcaico e o contemporâneo, onde se inscreve a oposição entre um Portugal rural e o mundo cosmopolita representado pelas grandes capitais europeias. Uma segunda tensão é a que opõe senhores e servos. A terceira liga-se à dialéctica entre norma e desvio. A quarta tem o seu núcleo dinâmico na relação entre o feminino e o masculino. Todas estas tensões têm como pano de fundo um mundo em escombros. Os escombros das relações quase feudais ainda existentes em Portugal e os escombros de uma certa ordem burguesa e puritana que se desenhava na Europa.

Branca, a protagonista e narradora, pertence a uma família da aristocracia rural, num mundo onde a relação entre senhores e servos surge ainda intocada em pleno século XX. Um mundo que mergulha as suas raízes num passado longínquo, onde ecoam os cultos báquicos e a tragédia grega, onde a superstição regula a vida dos aldeões, numa relação primitiva com as forças da terra e do sangue. Em contraposição estão os ambientes intelectuais de Paris e de Londres, num mundo em efervescência. Se em Briandos a vida se funda no preconceito, na contemporaneidade de Paris ou de Londres vive-se em oposição ao preconceito, numa afirmação do Iluminismo, que acaba, na verdade, por ser pouco luminosa. Branca une esses dois mundos, parte de um e procura integrar-se no outro. Num, logo no início do romance, o coro das carpideiras coreografa a dor, para que o ritual ancestral se cumpra, no outro novos rituais, como despir-se perante estranhos, ainda que numa festa privada, faz parte da destruição dos preconceitos.

De algum modo, o Portugal representado naquela aldeia chega até aos anos setenta. Estruturas arcaicas estabelecem fronteiras rígidas entre as classes sociais, as quais parecem, na verdade, mais castas ou estamentos do que classes. Essas fronteiras, porém, limitam-se à posição social, ao ordenamento do elemento humano na comunidade. Os senhores nascem senhores e os servos, servos. O pai de Branca, contudo, tem o poder, ancestral, de não confinar a sua sexualidade à mulher e ao meio a que pertence. A dominação exerce-se também na busca dos prazeres do sexo. A sua morte nos braços da Carriça, a prostituta da aldeia, sublinha com ironia esse exercício de contaminação de castas introduzido pela sexualidade. O surpreendente no romance é que a herdeira, Branca, acaba por reconhecer também ter direito de desfrutar do corpo de um servo, se isso lhe der prazer, num claro exercício de dominação.

Branca representa assim um duplo desvio da norma tradicional. Após a morte do pai, sai de Briandos para Paris, apoiada pela mãe que não quer que a filha tenha a mesma vida que ela, presa no seu papel de mulher, desprezada pelo marido, trocada constantemente pelas diversas amantes que ele vai encontrando nos seus domínios, até morrer na cama da mais desprezível mulher da aldeia. A ida para França representa uma libertação do papel tradicional da mulher, libertação assente num desvio à norma reguladora do destino das mulheres, independentemente da classe social de origem. Mergulha numa cultura onde o desvio se vai tornando a norma, onde a visão tradicional do catolicismo desapareceu e o prazer parece ser a regra. Esta emancipação do papel tradicional vai permitir-lhe, num momento de cansaço e desilusão do mundo moderno, retornar ao ponto de partida e seduzir um aldeão, uma encarnação, na imaginação de Branca, do Adão original e usá-lo como instrumento do seu prazer e do seu exercício de dominação. O desvio assenta aqui na inversão de papéis. A dominação masculina pela sexualidade é agora substituída pela dominação feminina através da mesma sexualidade.

As figuras masculinas são, por norma fracas, perante a força de Branca. Tanto Miguel como Manuel são dependentes dela. Miguel, um português candidato a escritor, é aquele que inicia a jovem e virginal vinda de Portugal na vida sexual, aquele que lhe abre o caminho para combater os preconceitos, mas, na verdade, não apenas é um impotente enquanto escritor, como fica dependente de Branca tanto do ponto de vista financeiro como do amoroso. Por detrás da retórica do combate ao preconceito, habitava-o o mais comum dos sentimentos de qualquer amante, o ciúme. Manuel, o viril aldeão imaginado como uma força genesíaca vinda do Éden, confunde o seu papel na vida de Branca. Ele não é para ela mais do que a Carriça fora para o pai de Branca. Alguém de que ela dispunha ao seu bel-prazer, sem que as ilusões afectivas que nasceram no coração dele tivessem qualquer impacto em Branca. Uma coisificação do macho, um exercício de dominação de um poder ancestral.

O romance tem sido lido como uma obra de emancipação da mulher, um grito de revolta feminista na atmosfera de sacristia do Portugal dos anos sessenta, uma afirmação da natureza tumultuosa do feminino, da incompatibilidade entre esse feminino e a regra e ordem trazidas pelo poder patriarcal. Ora, uma outra leitura parece possível, e, na verdade, mais plausível. Branca reproduz em mulher a dominação aristocrática do pai. É uma afirmação do poder da casta superior sobre as castas inferiores, mesmo que as estas sejam concedidos prazeres e ilusões. Esses prazeres e essas ilusões têm consequências funestas. Para além da imaginação, onde se inclui a própria imaginação de Branca, está uma realidade implacável, que, chegada a hora, desfaz quimeras e fantasias, e brilha acolitada pela morte. As vozes esganiçadas das carpideiras vibram lívidas nas agulhas que a penedia levanta. Arrepiam as cristas das vagas deste oceano de pedra. Descem de socalco em socalco. Vão lamber o gelo do rio que a geada glaciou e a taça do silêncio sepulcral da montanha enche-se do vinho da tua morte. Assim começa o romance, nesta estreita aliança entre uma realidade dura, sólida, a própria água gelou, e a morte. Toda a obra é explicação desta aliança e uma afirmação de um poder ancestral, que se manifesta agora no feminino. A sensação com que se fica é que os poderes ancestrais derrotaram as fantasias da contemporaneidade.

domingo, 17 de dezembro de 2023

Joaquim Paço d’Arcos, Herói Derradeiro

 

Publicado em 1932, Herói Derradeiro é o primeiro romance de Joaquim Paço d’Arcos. É uma obra que se inscreve no prolongamento do realismo do século XIX e pode ser inscrita no âmbito da literatura colonial portuguesa. De algum modo, o romance parece inspirado em e constitui um tributo a Carlos Sobral (Carlos Burnay da Cruz Sobral), um famoso sportsman da segunda década do século XX, que se terá distinguido em diversas modalidades, mas que teve no futebol a sua glória, tendo passado pelos quatro clubes lisboetas de então, o CIF, o Sporting, o Benfica, onde as suas performances foram mais dignas de nota, e Os Belenenses, clube de que foi fundador. No início dos anos vinte, terá ido para Moçambique, onde acabará por morrer em luta contra um leão. Não é, todavia, a sua faceta de desportista que inspira o romance, mas antes a de homem de negócios e de colono desbravador de África. Não se está, note-se, perante uma biografia ou um romance biográfico de Carlos Sobral. É uma obra ficcional em toda a sua dimensão e não retrata a vida do desportista morto, embora existam cenas por ele inspiradas. Retrata antes o destino do colonialismo português.

O romance inscreve-se nas consequências do Ultimato Inglês e da tensão entre os interesses portugueses e ingleses em África, no caso, em Moçambique. Carlos, assim se chama o herói derradeiro, tem um projecto para dinamizar a colónia portuguesa, desbravando terras para a agricultura e para a instalação da emigração portuguesa, desviando-a do Brasil, tornando-a útil aos interesses nacionais. Portugal, para manter a posse das colónias, precisava de as colonizar, de ter portugueses no terreno, como modo de evitar reivindicações de outras potências coloniais que, perante o abandono das terras de que os portugueses reclamavam a posse histórica, pretendiam tomar conta desses imensos territórios. Apesar de o romance ter sido publicado já à beira da formalização constitucional do novo regime saído do golpe militar do 28 e Maio de 1926, o tempo da narrativa é o da República, a qual nascera quase como uma resposta à fragilidade portuguesa, na questão colonial, perante a Inglaterra. Estávamos ainda longe dos dias em que as colonizações europeias começaram a ser varridas um pouco por todo o lado.

De algum modo, existe uma sombra na obra do jovem Paço d’Arcos proveniente do grande realista nacional, Eça de Queiroz. Também em Os Maias, o protagonista se chama Carlos. Este é uma idealização e um certo tipo de português, tal como Carlos da Maia o era, embora de um outro tipo. Carlos da Maia, apesar dos dons naturais e educacionais recebidos, falhou a vida. O seu diletantismo era claramente impotente para lidar e transformar uma sociedade lisboeta provinciana e decadente, fora do mundo, vivendo nos horizontes estreitos que uma cultura e uma educação fortemente influenciadas pelo catolicismo, a que se associava um marialvismo bacoco e destituído de sentido, impunha sem condescendência. O Carlos de Herói Derradeiro poderia partilhar com o outro de Os Maias a recepção de dons naturais e educacionais, mas nele não havia uma natureza diletante. Pelo contrário, decidiu jogar seriamente o jogo da vida, desbravando novas possibilidades existenciais. Se Carlos da Maia é uma idealização do português superior, mas vencido da vida, Carlos do romance de Paço d’Arcos é a idealização do português desbravador de novos caminhos e de novos horizontes.

O projecto colonial de Carlos vai enfrentar, junto do governo de Lisboa, a concorrência de um projecto de um grande empresário inglês. O conflito que se desenrola nos bastidores permite a Paço d’Arcos mostrar o modo não apenas como os interesses estrangeiros tinham comprado as elites nacionais para as pôr ao seu serviço, mas também a forma de funcionamento do poder em Portugal, onde o tráfico de influências é central para se obter aquilo que se pretende. Há toda uma corrupção moral e material das elites, descrita com ironia, corrupção essa que joga a favor dos interesses estrangeiros e contra os nacionais. Carlos é um patriota, mas na verdade o seu patriotismo é também ele impotente perante as teias do dinheiro estrangeiro. Aquilo que o romance deixa transparecer, nesse mundo onde as colónias tinham um papel central, era debilidade nacional, a sua incapacidade para tecer de modo estruturado uma política colonial, entregando a estrangeiros aquilo que deveria ser entregue à iniciativa de nacionais.

Também como em Os Maias, o amor tem um papel central na narrativa. Não um amor incestuoso e trágico. As figuras femininas de ambos os romances estão envoltas num mistério, mas este é bem diverso. Em Herói Derradeiro o mistério não passa de uma peripécia sem o dramatismo queirosiano. O desvelamento do mistério, porém, tem o mesmo efeito de pôr fim ao romance, embora as razões para isso fossem, na verdade, irrisórias e não as imperativas que impuseram o fim da ligação entre Carlos da Maia e Maria Eduarda, sua irmã. Em ambos os casos, a mulher é sempre envolta num véu, como se a sua natureza fosse essencialmente misteriosa, impossível de ser apreendida pelo olhar simples e desejoso do homem. O desejo que move os homens é incapaz de penetrar no véu que se esconde para além da bela aparência e oculta uma informação essencial. Quando a mulher se torna transparente, o herói perde o pé e cai.

Carlos de Os Maias e Carlos de Herói Derradeiro representam dois tipos de português distintos, se não antagónicos, há, no entanto, algo que, decisivamente, os aproxima. A derrota. Joaquim Paço d’Arcos pintou o seu herói com uma virtude activa que não se encontra no herói de Eça de Queirós, o autor, contudo, não deixa de dar continuidade a uma galeria de vencidos da vida. Também o seu Carlos, esse virtuoso patriota, é derrotado em todos os campos em que desejaria triunfar. Perdeu nos negócios, perdeu, talvez por precipitação, no amor e perdeu existencialmente ao sair derrotado na luta contra um leão. É plausível pensar que o autor, detentor de interesses nas colónias, tenha antecipado, sem ter disso consciência, a derrota do colonialismo português. A figura de Carlos toma, desse modo, um lugar central no imaginário do destino nacional. Ele figura o colonizador ideal e, ao mesmo, tempo prefigura a sua derrota, que o tempo haveria de trazer.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Paolo Giordano, Devorar o Céu

Publicado em Itália no ano de 2018, Devorar o Céu é um romance de Paolo Giordano, autor do famoso A Solidão dos Números Primos. A obra inscreve-se no vasto continente de romances de formação. Acompanha, durante 18 anos, o destino de quatro adolescentes até à sua fase de adultos. Contudo, esta transição entre idades é inscrita na exploração de mundos alternativos possíveis, no confronto entre a vida burguesa citadina e a vida no campo, com a sua utopia de contacto e imersão na terra. Trata-se da história de Teresa, de Bern, Tommaso e Nicola. Teresa todos os anos, no Verão, deixa Turim com o pai e vai para a zona da Puglia, onde a avó paterna vive lendo romances policiais. É numa dessas férias que, devido a um incidente, ela conhece os três rapazes da quinta vizinha à da avó. São três irmãos, embora não de sangue, que vivem com Cesare e a mulher, numa espécie de comunidade alternativa, na qual são educados no amor da terra, na devoção religiosa, na qual Cesare cruza, num estranho sincretismo, a Bíblia e crenças na reencarnação. Não frequentam a escola, mas a sua educação alternativa não deixa de lhes fornecer uma cultura com alguma riqueza.

Desde logo, Teresa deixa-se fascinar por este modo de vida alternativo e por um desses rapazes, Bern, aquele que, de alguma forma, busca devorar o céu, isto é, procura o absoluto nas coisas da terra. Sempre que a busca do absoluto se desloca da vida espiritual para as coisas deste mundo, ela transforma-se em radicalismo. A certa altura, o modo de vida alternativo abre a via, na consciência de Bern, para a ecologia e para um activismo radicalizado em nome da defesa da Terra. Depois dos radicalismos políticos dos anos sessenta e setenta, nos quais as novas gerações de então se propunham substituir o mundo burguês por uma utopia comunista, uma nova motivação anti-burguesa nasce dos problemas ecológicos e do definhar do planeta. O romance de Paolo Giordano, contudo, propõe uma linha de leitura da nova radicalização que a distingue da anterior, a qual, na verdade, nunca é tematizada ou sequer mencionada no romance. Os jovens radicais dos anos sessenta e setenta do século passado vieram da Universidade e das boas famílias burguesas, numa espécie de revolta contra o pai. Aqui, a radicalização de Bern é gerada fora do sistema de ensino, numa espécie de madraça de elevada exigência moral, tutelada por um pai que não é o dele, que lhe inculca uma fé no absoluto. Em Bern incarna-se a primeira virtude teologal que o romance põe em movimento. Bern move-se pela fé.

Teresa, por seu turno, encarna a terceira virtude teologal, a do amor. Apaixona-se por Bern e troca a sua vida burguesa, de estudante bem instalada em Turim, pelo culto da terra e dos valores que emanavam daquela comunidade vizinha da sua avó. Enquanto os jovens estudantes dos anos sessenta e setenta, ao radicalizarem-se, pretenderam, através do terror, destruir o sistema de vida burguês, Teresa limita-se, por amor, a deixá-lo de lado. É a única personagem onde, de facto, o amor se manifesta. Outras personagens parecem também serem tocadas por essa virtude. Contudo, o amor é apenas a capa com que um interesse egoísta se manifesta. Mesmo em Bern o amor não é mais do que uma manifestação de uma ânsia desordenada de satisfação daquilo que o atormenta. Por amor, Teresa troca a vida de Turim pela Puglia. Por amor, Teresa troca a casa da avó, que, entretanto, herdara, vendendo-a para poder suportar a utopia de uma vida ligada à terra, na quinta onde os jovens que conhecera viviam e tinham sido educados. O amor manifesta-se na abdicação e na entrega.

As virtudes teologais, porém, são três. À fé e ao amor há que juntar a esperança. Se é possível fazer encarnar a fé em Bern e o amor em Teresa, a esperança é uma espécie de horizonte que percorre a obra. A esperança de Cesare numa educação mais autêntica do que a educação convencional da escolaridade em escolas do ensino público ou privado. A esperança de uma vida na terra em alternativa à vida burguesa das grandes cidades ou mesmo da agricultura industrializada. A esperança no activismo ecológico como meio para salvar o planeta. A esperança é, em qualquer dos casos, a de uma salvação. Estamos no domínio da soteriologia. O romance não fala nas virtudes teologais, claro, nem tão pouco existe qualquer evidência que elas tenham perpassado na mente do autor. Contudo, é difícil que qualquer tipo de obra literária ou de outro tipo de arte fuja aos grandes arquétipos culturais que permeiam o espaço social em que se vive. Por muito que a Europa esteja em fase de descristianização, ainda hoje está submetida à herança do cristianismo, talvez com muito mais força do que aquilo que pode suspeitar. A esperança é então aquilo que anima as personagens romanescas, que anima a fé de Bern ou o amor de Teresa.

A esperança, contudo, vai-se revelando ao longo do romance como destituída de conteúdo e tudo aquilo que se espera acaba por não acontecer. Não se está perante um romance do desespero, mas de um romance em que a esperança é infundada. A utopia, como é habitual, acaba sempre em tragédia. A fé dinamizadora de Bern, com a sua potência dada por uma grande ânsia de um absoluto terreno, acabou por gerar uma falsa esperança, a qual acaba por esvaziar o amor de Teresa, roubando-lhe o seu objecto, reduzindo-o a uma mera memória. Tudo isto se passa já num ambiente pós-moderno, num mundo lasso, muito diferente daquele em que viveram os jovens radicais dos anos sessenta e setenta e que gerou o terror. Aqui são pequenas tragédias pessoais, com impacto nos mundos privados, mas sem ressonância social. Uma certa leitura do livro não deixará de chegar à conclusão de que sempre que se procura um mundo alternativo àquele que nos foi dado para viver, descobre-se que se vive no melhor dos mundos possíveis e que os mundos alternativos, como fruto de uma hybris que não deixará de ser castigada, são sempre inabitáveis.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Thomas Mann, Sua Alteza Real


Publicado em 1909, sete anos após o primeiro romance, Os Buddenbrook, Sua Alteza Real é uma das obras romanescas menos conhecida de Thomas Mann. Terá, na época, divido o público e a crítica, tendo conquistado os favores do primeiro e deixado a segunda desapontada. Quando se pensa na obra do autor o que vem de imediato à mente são romances como Os Buddenbrook, Morte em Veneza, Montanha Mágica ou Doutor Fausto. O que terá desapontado a crítica de então e encantado o público foi a obra parecer um conto de fadas, com um casamento por amor e um final feliz, tudo passado num Grão-Ducado, o de Grimmburg, que, também ele, na viragem do século XIX para o XX, parece saído de um conto de fadas. Esta sensação de leveza que percorre toda a narrativa é tudo menos superficial, havendo nela um olhar crítico tanto das instituições sociais como das existências individuais.

O Grão-Ducado é, na verdade, uma visão simbólica de parte da Europa que continuava, por aqueles anos, em convulsão desde que a Revolução francesa, nos finais do século XVIII, pôs em causa o Antigo Regime e as próprias monarquias. Um século não bastou para definir os contornos de um mundo novo. Foi preciso esperar a grande guerra de 1914-1918. Aquilo que Thomas Mann manifesta é a clara disfunção da instituição real – no romance, grã-ducal – num mundo movido pelo desenvolvimento da revolução industrial e da economia capitalista, onde os empreendedores são os grandes heróis que rasgam os caminhos que o mundo vai trilhar. Quando o Grão-Duque João Alberto III morre, o filho Alberto sucede-lhe, mas é um homem doente, neurótico, incapaz de exercer as funções públicas que lhe dizem respeito, que as delegará sistematicamente no irmão Nicolau Henrique. Thomas Mann mostra a decadência da instituição política na doença daquele que lhe dá corpo. A estrutura política tradicional do Grão-Ducado está doente por desfasamento com a realidade do mundo. Essa doença mantém o país atrasado e contamina as próprias finanças do Estado e da coroa. Esta era já, por essa Europa fora, a situação de muitas monarquias.

As grandes decisões políticas já não passavam pela coroa. Esta aquiescia nelas e tinha uma função de representação da unidade do país. A recusa do Grão-Duque incumbente de cumprir as funções de representação abriu o caminho para que o irmão, Sua Alteza Real Nicolau Henrique, figura em torno da qual se desenrola o romance, as exercesse. Como segundo na linha de sucessão do pai e tendo em conta a debilidade do irmão, tinha sido preparado para essas altas funções de representação. Essas altas funções, porém, não desencadeavam absolutamente nada no país. Tudo teria acontecido sem que ele estivesse presente numa inauguração, numa festa, num jantar. A vida efectiva passava ao lado da vida representada. Apesar de aclamado e vitoriado em todos os lugares onde se encontrasse, apesar de amado pelo povo que nele se reconhecia, Nicolau Henrique começou a sentir um grande vazio dentro de si. Tudo era meramente protocolar, uma encenação que servia para dar um verniz à realidade, mas que nenhum poder tinha sobre ela. Não apenas os discursos, mas as meras conversas de circunstâncias eram movidas por hábitos de cortesia protocolares a que faltava o interesse vivo pelas pessoas e pela realidade. O vazio sentido por Nicolau Henrique não era mais do que o resultado da pressão da função sobre si-mesmo, sobre a sua identidade, sobre a pessoa e a sua subjectividade.

Para além de conto de fadas, Sua Alteza Real é também um romance de formação, na tradição do Bildungsroman iniciada com Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe. O romance começa com o nascimento de Nicolau Henrique, um rapaz perfeito, com a excepção do braço esquerdo encurtado e a respectiva mão atrofiada, devido a inibição amniótica, no dizer do médico pessoal do Grão-Duque. A aprendizagem da futura Alteza Real começa na prática com o saber lidar com a sua deficiência, o que o obrigava a um certo tipo de pose. O romance mostra-o, depois, nas diversas etapas de vida. Na escola, no serviço militar, na universidade. Em todo lado, porém, o seu estar ali é uma representação, marcada sempre por uma descoincidência entre a ipseidade, constitutiva da pessoa, e a função inerente ao estatuto. Na verdade, ele não foi um verdadeiro estudante, nem um autêntico militar. Toda a sua formação foi feita para que a realidade, incluindo a sua, lhe fosse invisível. O fundamental era a adequação à função social que o estatuto o obrigava. Mais, o fundamental é que a sua pessoa se reduzisse ao seu conteúdo funcional. A sua aprendizagem é uma aprendizagem do esvaziamento da vida interior e de tudo aquilo que poderia ser marca de uma subjectividade que estivesse para além da máscara social.

O conto de fadas é desencadeado pelo interesse de Nicolau Henrique por Imma, a filha de um alemão, Samuel Spoelmann, cujo pai emigrara para a América, e lá fizera uma fortuna colossal. Spoelmann decide deixar a América e instalar-se no Grão-Ducado, pois as águas termais ali existentes ajudam à sua saúde. Imma é uma rapariga moderna, impetuosa, frequenta a universidade e interessa-se por coisas extraordinárias como a álgebra e outros ramos da matemática. Um longo processo de aproximação vai conduzir ao casamento do príncipe defeituoso e da bela, mas estranha, Imma Spoelmann. Thomas Mann não pinta uma paixão entre ambos, mas um amor que se desenvolve de forma apolínea, digamos assim. Não é um desvario dionisíaco provocado por Eros que os une, mas uma aproximação de ideais, na qual Nicolau Henrique se vê confrontado, para conquistar Imma, em dar conteúdo à sua pessoa, tornar-se um sujeito de si mesmo e até da sua função, dando-lhe um conteúdo pessoal e não meramente protocolar. Isto é, transformando-se num burguês, preocupado com as finanças do Grão-Ducado.

O casamento é visto pelo povo, pela corte e pelos os homens que possuíam o leme político como essencial para a subsistência do Grão-Ducado, à beira da bancarrota, devido a uma enorme dívida externa e sem uma economia capaz de a suportar. A transformação de Imma em princesa é apenas um pró-forma que dá colorido à transformação de um regime aristocrático decadente num regime burguês, assente na gestão rigorosa dos bens e fundado no poder do capital. O que Thomas Mann mostra no romance é a derrota da aristocracia, não porque tenha sido varrida do poder e da coroa por uma revolução violenta como a francesa, mas porque os próprios aristocratas se transformam em burgueses disciplinados. O vazio de uma função que se tornara meramente protocolar e que constituía a pessoa de Nicolau Henrique é, agora, preenchida pela descoberta da subjectividade, pelo interesse pela realidade material do mundo e por um amor apolíneo, onde as aventuras de Eros, movidas por Diónisos, estarão, por certo, rigorosamente vigiadas pelo duro e penetrante olhar de Apolo, com os seus imperativos de submissão à racionalidade.